Opinião

Diário da Peste. Quando o humano acorda e não precisa de calçar sapatos

Diário da Peste,
23 abril

Quando o humano acorda e não precisa de calçar sapatos.
Um dia e depois outro e depois outro.
Merkel disse que o país continua a caminhar sobre “o mais fino do gelo fino”.
Mesmo imóvel o peso do humano faz o perigo.
Tenho a minha casa no sapato
No sapato velho comprado em saldos
, canta Manu Chao na missa hippie de 23 de Abril.
Tenho a minha casa no sapato

Um sapato especial: Com 4ª e 5ª e marcha-atrás.
“Seria uma pena terrível se a nossa esperança nos castigasse”, acrescentou Merkel.
Não sejas ansioso, humano, não calces já os sapatos.
Não te esqueças do mais fino do gelo fino.
Merkel acerta e faz sínteses.
Saber quem escreve o que Merkel diz.
Seria terrível se a nossa esperança nos castigasse.
Quase Hölderlin.
Bebo café.
Observo a ferida da Roma que quase desapareceu e imagino um Hölderlin louco a fazer versos para um presidente.
Chamo a Jeri, a golden de olhar melancólico, e convenço-a a esperar pelo almoço.
Seria uma pena terrível se a nossa esperança nos castigasse.
Quase lhe digo isto e ela quase encolhe os ombros.
Estado do Missouri processa China e testes da vacina em humanos começam hoje em Oxford.
Um braço humano disponível.
Ok, ok, ok.
Confrontos voltam aos subúrbios das grandes cidades em França.
KO não é OK.
A origem do ok. Talvez o calão a partir de all correct, dizem. Ok.
Ou na guerra, uma espécie de relatório rápido.
0 (zero) killed, nenhum morto. Ok.
Na Grécia, hoje: Zero mortos. OK.
Nos Estados Unidos muitos milhares de mortos: não ok, nada ok.
Estudo um livro religioso: Folhas do Jardim de Morya.
Yoga society.
Abro ao acaso: “as flechas sem força caem”.
É preciso convicção, digo.
Mais de 26 milhões de americanos perderam o emprego e Merkel avisou que não se pode voltar à vida anterior à epidemia.
Os sapatos de 2020 não têm marcha atrás.
Talvez 4ª e 5ª mas nenhuma marcha atrás.
William Gibson: “o futuro já está aqui, só que está mal distribuído”.
Milhares de pessoas em fila a pedirem um naco de futuro.
Mas alguém a encolher os ombros, mãos vazias.
Hoje acabou o futuro. Peço desculpa.
E amanhã?
Amanhã presumo que ainda haverá menos.
Há uns meses sim, havia muito. Agora não.
Deliro com diálogos, e o que se passa na cabeça é uma maneira de um sujeito se entreter enquanto o mais fino do gelo fino permanece o mais fino do gelo fino. E não podes sair.
Folhas do Jardim de Morya.
Decidi, a partir de hoje usar este livro como se usa o I Ching.
Tenho o I Ching algures num caixote num armazém em Lisboa.
Ele pode gritar mas não o ouço.
A proximidade apesar de tudo é importante.
Tenho a minha casa no sapato
que me fez o meu sapateiro
, canta Manu Chao.
Numa outra página do livro fala-se da calma no meio da “infinita movimentação”.
E aparece esta frase:
“Depois da primeira tranquilidade segue-se a segunda”.
Abrir ao acaso este livro para esclarecer o que não se entende.
Só o acaso torna claro.
Milhares de motos para entregas ao domicílio na Tailândia.
Robots que transportam compras em Medellín.
Talvez do outro lado da esquina a primeira tranquilidade.
Mas ainda falta.
Tumulto, tumulto, calma, calma, sobressalto, tumulto e etc.
Um ciclista treina sozinho em casa. Uma bicicleta impecável, mas a rodar no mesmo sítio.
Dois projectos rápidos.
Esperar pela segunda tranquilidade.
Não deixar que destruam a primeira.

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