Diário da Peste,
20 abril
Nossa Senhora das Janelas, sim.
Todos à espera que o vazio fique ainda mais vazio.
Esvaziado daquilo que mete medo.
Máscaras Louis Vuitton, 199 dólares.
Numa caixa amarelada, bem elegante.
Lá dentro um saco, o mesmo nome: Louis Vuitton.
Anuncia uma jóia, mas é uma máscara castanha, tamanho M.
Tamanho M de médio ou de Medo?
Imaginar tamanho M.
Tamanho do Medo.
Que a Nossa Senhora das Janelas nos permita sair, rezam uns sem mexer a boca.
Só com os olhos.
“Tortos andam os grandes homens e os rios,
Tortos, mas para o seu destino”.
Nietzche ficou louco e martelava com a cabeça as paredes para ver se ficava bom.
Isto não é biográfico, é uma invenção.
Imagino abrir paredes com a cabeça para finalmente ver o vizinho.
Em Português M na roupa deixou de significar médio e passa a ser medo.
Roupa com tamanho do medo.
“é essa a sua melhor coragem,
não têm medo dos caminhos tortos.”
Não ter medo dos caminhos tortos.
Aníbal Ruão, 93 anos.
Foi várias vezes ao hospital recentemente: uma queda e infecções urinárias.
Numa dessas idas detectaram covid-19.
Esteve 15 dias no hospital.
Sobreviveu, regressou.
Quando regressou a casa os vizinhos estavam às varandas.
Foi recebido com palmas.
Pode pelo caminho torto chegar-se ao destino? Sim.
Pode caminhar-se em linha recta para o sítio errado? Claro.
Aplauso estético e aplauso a quem sobrevive.
Penso nas palmas no teatro.
Aplaudo porque é belo, aplaudo porque é forte, aplaudo porque me fez pensar, aplaudo porque sobreviveste.
Máscaras também com banho de prata e de ouro.
Máscaras com pedras preciosas; o preço de um carro.
Um cartão escrito à mão a dizer: “estou agradecido pelo ar fresco, pelas ideias frescas.”
Um movimento: as pessoas agradecem.
Uma mulher com um cartão à frente das pernas: Estou agradecida pela minha vagina.
Um homem de chapéu à cowboy, tronco nu, tatuagens por todo o lado.
Segura um cartaz onde escreveu: Estou agradecido pelo porno grátis na internet.
Um cartaz ao pescoço de um cão com três bolas à sua frente.
O cartaz diz: estou agradecido por ter três bolas para brincar.
Um jovem oriental: estou agradecido por todos os doentes ainda estarem vivos no Vietname.
Vejo que o branco do muro se mantém branco.
Uma tarefa diária, com chuva: ver se a água não apaga o branco.
“As autoridades da 'Big Apple' libertaram mais de 1.400 detidos desde o início de março:”
Numa Província do Equador registaram-se centenas de mortes nas primeiras duas semanas de Abril.
Ontem, concerto: cada músico na sua casa.
Mick Jagger canta “You Can't Always Get What You Want".
Nem sempre consegues o que queres. Boa síntese.
Outra síntese possível: estás vivo, por vezes consegues o que queres.
O baterista dos Rolling Stones, Charlie Watts em casa sem bateria.
Toca com as baquetas em malas que estão à sua frente.
E no sofá.
“You Can't Always Get What You Want".
Perto de um hospital em São Paulo há sirenes de ambulâncias.
E também buzinas de carros que não deixam passar as ambulâncias.
Os doentes ficam parados à espera, no meio do tráfego político.
Buzinas e sirenes competem para ocupar o centro do ar.
Não podes ter sempre o que queres, querido.
Nos Estados Unidos imagens de sem abrigo num estacionamento de automóveis.
Deitados por cima de números e letras.
Mick Jagger grita - e Charlie Watts, já velhinho, parece um maluco a fazer das malas de viagem uma bateria.
Como bater palmas a quem não é sobrevivente?
Chove muito e depois pára. Chuva intermitente e alguma luz.
Perguntaram-lhe porque continuava a escrever em yiddish.
Todos os que podiam ler nessa língua tinham sido eliminados nos campos de morte.
Isaac Singer respondeu que escrevia para a sombra deles.
Tatatatatatatatatatatata.
O barulho de quê no meio do tédio?
Algo se partiu no mundo do vizinho.
Olho lá para fora: árvores, terra, muro branco e pedra informe; muitas sombras e dois cães.
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Índice
Diário da Peste, O louco religioso fechou a família toda em casa
Diário da Peste. A tinta branca no muro
Diário da Peste. O segundo século XXI começou em Wuhan