Diário da Peste,
18 abril

A tinta branca no muro continua branca 24 horas depois.
A Turquia libertou milhares de presos “incluindo chefes da máfia —, mas deixa ativistas, políticos e jornalistas nas cadeias”.
Uma mercearia vende produtos gourmet, mas o estômago é uma massa teimosa. Não se sacia com o requinte, mas com medidas de comida concretas.
A fome não se mata com o prazer.
É uma questão de peso, não de beleza.
Ouço Tom Zé.
Tô dividindo prá poder sobrar
Desperdiçando prá poder faltar
Estado de emergência.
Um cidadão pode sair para ir à mercearia, à farmácia ou ao banco.
O louco Domenico no “Nostalgia” a dizer:
“Vocês homens e mulheres sãos, para que vos serve a saúde?"
Dois jovens com trinta anos atiram uma bola de uma janela para a outra.
São vizinhos.
Janelas de um prédio, a bola cai.
Quem vai lá abaixo?
Os prédios tornaram-se ilhas rodeadas de fossos.
O que cai não pode ser recuperado.
Tô bem de baixo prá poder subir
Tô bem de cima prá poder cair
O inferno está lá em baixo e os humanos estão em cima a tentar viver.
Mas a comida também está lá em baixo. E os medicamentos.
A comida está no mesmo andar do diabo.
Comida, medicamentos, dinheiro.
Uma síntese tem sempre três elementos.
“Nunca aprendi a fumar, é demasiado difícil”, diz Domenico, o louco de fé.
A Rainha Isabel II não vai celebrar o 94º aniversário como costuma.
Não haverá a habitual salva de tiros.
“É preciso ter ideias maiores”, diz o louco aos sãos.
Roberta, na Lombardia, não toca em Paolo há vinte dias.
A sua mão está podre e pode cair a qualquer momento ao chão.
Não é o momento de deixar cair coisas ao chão.
Tô iluminado Prá poder cegar
Tô ficando cego Prá poder guiar
Do México, Andrea conta-me:
A minha mãe visitou o meu pai há uma semana no lar de idosos onde ele mora.
Ele está muito doente (alzheimer).
Eles estão separados, mas a minha mãe ajuda o lar a cuidar dele.
Segundo as regras do lar, agora, ela não pode aproximar-se.
Dois metros, a distância permitida.
(“Ele vai queimá-la no fogo que não se apaga”, uma citação bíblica.
Está escrita nas costas de um homem que passa na rua.)
Mandei-lhe um áudio pelo telemóvel da minha mãe, continua ela.
Sei que ele não percebe grande parte.
Mas contei-lhe o que tenho feito, as receitas que tenho cozinhado.
E o meu pai respondeu, a gritar lá da distância dos dois metros, que eu não me esquecesse de cozinhar beringelas da maneira que ele me ensinou.
Eu não me lembro disso, disse ela.
Não sei do que é que o meu pai está a falar.
Eu e Andrea, a amiga do México, fizemos então uma pausa.
E depois eu perguntei-lhe se ela tem cozinhado beringelas da maneira que o pai lhe ensinou.
E ela respondeu que sim.
Sim, sim, sim, disse ela. Sim, três vezes.
Tom Zé continua:
Eu Tô me despedindo prá poder voltar
O pai de um amigo escreveu hoje aos três filhos uma mensagem: Faz hoje 50 anos que regressei da guerra.
O que significa isso?
Manu Chao canta: Tudo Llegará.
E tudo chegará, isso é evidente,
A personagem de um filme diz: Não desejo mais nada que seja só para mim.
E outra diz ainda: Sei que queres ser feliz, mas há coisas mais importantes.

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ÍNDICE

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Diário da Peste. Calígula era um imperador sanguinário
Diário da Peste. Aqui está um pouco difícil
Diário da Peste. Alguns idosos saem para a rua de forma ostensiva