Opinião

Diário da Peste. O segundo século XXI começou em Wuhan

Diário da Peste,
17 de Abril

Mesmo que se grite de noite, o dia não começa mais cedo.
Já devíamos saber.
Uma insónia é isto: a manhã atrasou-se.
Os habitantes de Wuhan autorizados a sair.
Wuhan como um novo centro do mundo, pelo menos deste século.
O segundo século XXI começou em Wuhan.
O primeiro nas Torres Gémeas, 2001.
Rezar para que o século não se parta mais à força do tumulto.
Abro um livro e depois outro; as notícias ocupam a cabeça.
Alguém me diz ao ouvido que dois séculos num século já basta.
Que não venha o terceiro antes do tempo.
A cantora Taylor Swift cancela digressão europeia, Nova Iorque impõe máscaras nos transportes público, número de presos nessa cidade é o mais baixo desde o fim da II Guerra Mundial.
Em Itália, um provocador, Roberto.
No meio da tragédia diz que o critério não deve ser a idade, mas a beleza.
Salvar os belos, diz Roberto.
Um velho belo deve ser salvo.
Desligar a máquina dos feios, diz, provocador.
Roberto diz que o governador do Texas diz que os mais velhos se deveriam voluntariar para morrer para salvar a economia.
Dos velhos depende a economia, diz a economia.
Os velhos têm de ajudar a economia, diz a economia.
A máquina das músicas mais ouvidas.
Só te podes emocionar em inglês.
Em 1986: Terence Trent D'Arby - Sign Your Name
UB40 - Red Red Wine
Bobby McFerrin - Don't Worry, Be Happy
Guns N' Roses - Sweet Child o' Mine.
Ursula von der Leyen: a Europa deve um "sentido pedido de desculpas" à Itália.
Muitos dos que estavam afastados de Deus, se aproximaram agora.
Muitos dos que estavam próximos se aproximaram mais, diz um crente na televisão.
Camaratas com cadáveres, cada um no seu piso - a estranheza da imagem.
A Inglaterra foi campeã do mundo de futebol em 1966.
“A partida foi realizada em 30 de julho às 15h, no Estádio de Wembley em Londres, com um público estimado em 98 000 pessoas. Sob o apito do árbitro suíço Gottfried Dienst, o primeiro tempo terminou empatado 1 a 1. No final dos 90 minutos, o resultado era de 2 a 2. No minuto 98, Hurst marcou novamente; desde, então, debate-se se a bola realmente passou a linha”.
Talvez a bola tenha realmente passado a linha.
Da Grécia, a tradutora manda-me uma imagem.
Foto da sobrinha, lençol branco atrás das costas.
Ar de médica a examinar o cão Fidel com o estetoscópio.
Tem 2 anos e meio.
O estetoscópio substitui no pescoço os fios religiosos.
Um médico tira do pescoço a cruz, põe estetoscópio.
Outro põe a cruz, tira estetoscópio.
Miniatura da cruz em prata e estetoscópio de um metal mais simples: o som que as duas coisas fazem quando se juntam.
E o som que dois corpos fazem quando se ignoram.
E o som que dois corpos fazem quando não se tocam. E etc.
“Norman Hunter, o ex-defesa, campeão do mundo em 1966 por Inglaterra, morreu, esta sexta-feira, aos 76 anos, vítima do novo coronavírus. “
Um verso de e.e. Cummings: “a minha especialidade é viver”.
Outro verso de e.e. Cummings: “se não podes cantar tens que morrer”.
Há quem fale em navios para velhos, diz alguém na minha cabeça.
Navios que alojem a população mais frágil enquanto a peste não passa.
Navios para loucos em certos séculos.
Navios para velhos em 2020.
Navios atirados para o meio do mar.
Talvez com animais domésticos para não estarem tão sós.
Uma ilha para velhos, alimentados a helicópteros receosos que lá de cima mandem marmita e medicamentos.
Uma espécie de céu técnico, helicópteros ágeis, com a compaixão à distância certa.
Isso.
Francis Allys, artista.
Empurrou um bloco de gelo nove horas pela cidade do México.
O gelo à medida que é empurrado desaparece.
Transportar aquilo que desaparece
Mudar de posição aquilo que se vai desfazendo na mudança.
A ferida da Roma melhora.
E Jeri, a golden, já entendeu o percurso de dez mil sombras.
É difícil pensar no começo abrupto de um novo século resultado de uma alegria mundial unânime.
A comédia faz rir e isso basta.
Pinto de branco um muro velho.
Tinta barbotmat, base aquosa.
Resistente às intempéries, diz na lata.
Só a tragédia parece ter força para cortar em dois o tempo.
A vida é transportar aquilo que desaparece.
É preciso encomendar tinta; há mais muro.

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