Opinião

A epidemia e a opinião pública

O vírus não olha para condições económicas quando se trata de escolher hospedeiros, mas não nos iludamos sobre a “democraticidade” da epidemia ou das medidas adotadas para a sua contenção: as suas consequências são brutalmente desiguais

A sondagem ICS/ISCTE sobre as reações dos portugueses ao Covid-19 traz algumas boas notícias. A maioria esmagadora dos portugueses adultos modificou os seus comportamentos, evitando locais com muita gente, adotando cuidados de higiene pessoal reforçados e mantendo a distância de três passos/dois metros em relação a pessoas fora de casa. Estamos no topo dos países europeus deste ponto de vista, na base dos dados conhecidos.

Outra boa notícia é que tendemos a confiar mais na televisão e na imprensa escrita como fontes de informação do que nas redes sociais. Ao contrário do que sucede nalguns países onde se colocaram as mesmas perguntas em estudos de opinião, isso é verdade até para os mais jovens. Nas redes sociais existem muitas coisas maravilhosas, mas existem também demasiados palpites e disparates para que possam ser tomadas como fonte de informação fiável nas atuais circunstâncias.

Finalmente, a maioria dos portugueses preserva confiança na capacidade de resposta das autoridades públicas. É certo que mais numas (forças de segurança, Direção-Geral de Saúde, primeiro-ministro, Presidente da República) que noutras (ministra da Saúde, Assembleia da República). Os mais velhos e os que se posicionam à esquerda têm mais confiança que os mais novos e os que se posicionam à direita. Mas as diferenças não são grandes e há maiorias confiantes em quase todos os segmentos.

Mas nem todas as notícias são boas nesta sondagem. Cerca de um em cada três adultos ou tem mais de 70 anos ou diz ser doente crónico, com hipertensão, problemas cardíacos e respiratórios, diabético ou imuno-deprimido. Entre esses, um em cada cinco diz não ter apoio que lhe permita ficar em casa e sair apenas em circunstâncias excecionais. Tendo em conta as margens de erro da sondagem, podemos estar a falar, no mínimo, de 400 mil pessoas em especial risco que não conseguem cumprir as recomendações para elas fixadas.

E há mais. Cerca um em cada cinco adultos afirma que a situação financeira do seu agregado familiar já foi afetada pela epidemia. E são 12% os que dizem que, se as atuais restrições se prolongarem por (apenas) mais um mês, deixarão de conseguir pagar as suas despesas básicas. 12% costuma ser daqueles valores numa sondagem que atiramos para o canto das “minorias” com alguma facilidade. Mas poderemos estar a falar de um milhão de pessoas, sem contar com as que delas dependem. Uns e outros, os que já foram afetados e os que ficarão em situação crítica daqui a um mês, não se distribuem aleatoriamente pela população. Previsivelmente, tendem a ser os menos instruídos e os que já tinham mais dificuldades em viver com o rendimento “pré-epidemia”.

O vírus não olha para condições económicas quando se trata de escolher hospedeiros, mas não nos iludamos sobre a “democraticidade” da epidemia ou das medidas adotadas para a sua contenção: as suas consequências são brutalmente desiguais.