Opinião

A homenagem de António Costa a Carlos do Carmo (com um texto e poemas)

Num texto escrito para o Expresso, António Costa recorda a carreira do cantor que marcou para este sábado o último concerto da carreira. Republicação de um artigo do primeiro-ministro, escrito a 9 de novembro de 2019
Alberto Frias

Expresso

Carlos do Carmo escolheu que logo à noite dará o seu último concerto. Com 45 anos de carreira bem vividos e a um mês de comemorar 80 anos de vida, temos de respeitar esta escolha. Hoje, no Coliseu de Lisboa, não nos despedimos, nem iniciamos a saudade. Festejamos mais esta etapa da carreira e da vida do Carlos do Carmo, como que uma nova estação do ano. “Inverno não ainda, mas outono”, primeiro verso do poema de Ary dos Santos que selecionou para encerrar a coletânea de 80 canções que este ano editou como Oitenta.

O outono é a estação em que a natureza se renova e acolhe novas sementeiras. E seguramente que o mais notável contributo de Carlos do Carmo para a Cultura portuguesa é a forma como militantemente renovou o fado e o preparou para novas colheitas. Sim, Carlos do Carmo não é só um notável fadista, que o público, a crítica e um Grammy consagraram. Desde logo, porque canta muito mais que o fado, como os tributos que presta aos seus ídolos Brel ou Sinatra bem demonstram. Mas porque é mesmo um militante do fado.

Foi com militância que libertou o fado do estigma de símbolo da ditadura e o renovou no Portugal de abril. A militância que prossegue, que mobiliza novos compositores e poetas, que encoraja e acarinha novos intérpretes, que valoriza os instrumentistas, que conquista novos públicos. A militância que levou a UNESCO a reconhecer o fado como património imaterial da humanidade. É com este espírito que sonhou o Museu do Fado como uma verdadeira escola para o futuro, porque depois do tempo, tempo vem, e o fado também se há de continuar a renovar e para renovar é preciso aprender o que de velho se faz novo.

Há 5 anos, para assinalar os seus 40 anos de carreira, prestei a Carlos do Carmo a melhor homenagem que lhe sei prestar, fazendo-me mero eco das palavras dos poetas que escolheu cantar (agradeço as palavras emprestadas a Alexandre O’Neill, Américo Tavares dos Santos, Carlos Simões Neves, Fernando Pinto do Amaral, Fernando Tordo, Frederico de Brito, João Linhares Barbosa, Joaquim Pessoa, José Carlos Ary dos Santos, José Luís Tinoco, José Mário Branco, Júlio Pomar, Júlio de Sousa, Manuel Alegre, Manuela de Freitas, Maria do Rosário Pedreira, Nuno Júdice, Vasco Graça Moura), das palavras a que deu voz, as palavras que agora repito, porque são intemporais, como intemporal é a obra e a vida de Carlos do Carmo:

Sem capricho ou presunção,
Não há palavras para dizer esta canção
Gostar de ti é um poema que não escrevo.
A falar não posso dar-me
Mas ponho a alma a cantar,
Poetas do meu país

Há qualquer coisa de fado,
Há qualquer coisa de sonho.
A sina de quem nasce fraco ou forte,
(Do) filho a desbravar o que Deus lhe deu,
Um sorriso traquina,
Para cumprir a sua sina.
(Ainda) veio pr’o meio da rua
Cantar as suas canções.
Nasceu assim, cresceu assim, 
chama-se fado.

É loucura, oiço dizer.
Ninguém se agarre 
à quimera
Do que o destino encaminha.
Mas bendita esta loucura
De cantar e de viver,
Um fado de três tempos,
Andamentos acordados.
No desamparo teve sempre duas almas,
Tristes bizarras em comunhão,
Que se chamavam a viola 
e a guitarra.
Um braço é a tristeza,
Um outro é a saudade.

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram,
Da vida que nos juntou,
Fados de rara beleza,
Do sonho do Homem,
A falar dum homem novo,
E repartir o sol por todos nós
A maré povo em sobressalto,
A flor de Abril também.

Chamam Tejo às tuas águas,
Podia chamar-te 
pátria minha,
É que eu sei que a raiz
(De mim) está em Lisboa.
Lisboa menina e moça, amada.
Lisboa fadista de Alfama 
e Oxalá,
Vai cantar o Bairro Alto,
O amarelo da Carris,
O cacilheiro, comboio de Lisboa sobre a água,
Canoa de vela erguida,
Com gaivotas e marés,
À Ribeira,
À Pampulha,
À Mouraria,
No Castelo,
No Terreiro,
Da Bica à Madragoa,
Trepa à Graça em sobressalto,
Ai! Lisboa como eu quero!
Cidade, mulher, das 
nossas vidas

Lisboa é perto e não bastante.
Lisboa abriu as janelas
Que a fazem estar sentada sobre o mundo
À beira mágoa desfolhada
Sou do fado ou da cidade
Ou apenas de onde estou?
Cada país descoberto,
Em cada povo encontrado,
Foste viagem de barco
Português marinheiro
Dos sete mares andarilho,
Riso de maré cheia,
Oiço este mar que ressoa, enquanto canta,
Lisboa, lisboeta,
Cidade marinheira sem ter que navegar.

Engrandecem-te o passado.
Se estás a tempo, recua
Mas se não estás, continua.
(e) O futuro é o sítio 
onde se mora.
No teu poema
Existe (…) um verso em branco à espera de futuro.
Como se fosse uma criança.
Na alma deste fado, 
sempre vivo
Os dias passam iguais
Aos dias que vão distantes
Cresce um canto cristalino, sem idade
Rosto de outrora (feito amor), feito agora,
Pelo relógio das horas que o fado fez,
Amor sentido,
Mas jamais cansado.
E no bairro mais alto 
do sonho,
Mesmo aqueles que o não cantam não esqueçam
Nunca é tarde, nem cedo, para quem se quer tanto.