Imaginem um daqueles limbos, quando não sabemos se estamos a dormir ou acordados, porque o que vemos à nossa frente não parece encaixar no que esperamos que seja a realidade. Peças que parecem pertencer a cenários imaginados, a bocados de memória.
Assim é Luanda.
Nos passeios, surpreendentemente largos para uma metrópole africana, as árvores fazem da cidade um lugar respirável. Há reminiscências profundas do imaginário colonial. Velhas paredes esbatidas. Rosas, verdes, amarelas. Blocos residenciais erguidos nos anos frenéticos da guerra contra os portugueses, quando Portugal alimentava uma estratégia contrassubversiva de grande investimento em Angola.
E depois há os arranha-céus, em maior número do que as imagens desatualizadas que chegam a Lisboa, irrompendo abruptamente pelas ruas do bairro de Ingombota, muitos deles inacabados, à espera de se cobrirem de vidro assim que a crise passe, se ela alguma vez passar, virados para a baía, compondo uma ideia do que foi o futuro imaginado para a cidade, demonstrações de um desejo intenso de ser Manhattan, Singapura, Miami. E, sobretudo, de um desejo de estar longe do chão. Longe do musseque.
Mas o musseque está sempre perto.
Albertina de Fátima explica como faz com o neto pequeno, quando de repente lhe foge o chão e cai no esgoto. Usa água com lixívia, como todas as outras mães. As crianças caem muito, porque é difícil dizer-lhes para não brincar. Andam por todo lado, organizados em bandos, por entre montanhas de plástico sujo e um substrato permanente de restos orgânicos. Quem pode pensar que não levam as mãos à boca?
A cinco minutos das ruas de Ingombota e do melhor hotel da cidade, o Epic Sana, com a sua piscina panorâmica virada para a a baía de Luanda, o Povoado é um ajuntamento improvisado, feito por uma comunidade de 515 famílias de pescadores e peixeiras, mais os seus milhares de crianças.
Formado por construções de chapa enferrujada, assentes em parte em estacas de madeira velha, o bairro está delimitado por duas valas de drenagem, onde o esgoto escorre devagar a céu aberto até à laguna de Chicala, por onde entra o mar. “Tudo passa por aqui, as fezes dos vizinhos, porque lá no bairro de casas de bloco não tem fossa”, conta Albertina. “Por isso, quando as crianças caem, é obrigatório lavar e depois desinfetar com lixívia.”
A água é preta e densa. Quando chove, é pior. “É uma coisa séria”, diz Albertina. “E o cheiro é muito horrível.” Fica escorregadio e se a chuva for intensa e houver o azar de ser noite, não há como dormir. As valas extravasam os limites e o esgoto junta-se à água do mar para cobrir tudo o que é chão, dentro e fora das barracas onde vivem. “Quando chove uma chuva grande, aqui não tem casa que resista.”
As barracas são partilhadas por muita gente. Cinco, sete, oito famílias. Às vezes mais de 20 pessoas em quatro metros quadrados. Na barraca de Albertina são cinco famílias mais os filhos. Cada cama faz de conta que é uma casa. “Aqui vive um casal”, aponta para um espaço de dois metros quadrados onde só está um colchão. “Têm um bebé de dois meses. O marido é marinheiro. E a senhora dele vende peixe.”
Ao fundo, na cama de Albertina ficam ela e mais quatro filhos. Há ainda uma filha, mas casou-se e foi viver com o marido. Um dos rapazes já tem 23 anos. “Quando ele sai do serviço à noite, tenho de tirar aquela mala ali”, aponta. Como é adulto, cabe-lhe dormir debaixo da cama, no pior lugar possível, sujeito ao risco de inundação súbita. “Não tem porquê nós estarmos a sofrer assim. Não tem porquê”, lamenta. “Quando ando na cidade de Luanda e vejo que o nosso país tem riqueza e nós aqui a viver nestas condições, sinto-me muito mal. Porque há quem tenha cinco, seis casas e não consegue dividir com o outro.”
O marido, entretanto, foi-se embora. “Desde que saímos da Areia Branca, que ele não vive comigo. A Areia Branca trouxe-nos muita destruição.”
A Areia Branca era onde a comunidade morava antes de tudo acontecer, em junho de 2013. Nessa época eram mais de 3 mil famílias, do outro lado da laguna da Chicala, uma língua de terra plana e clara à beira do mar. “Eu na Areia Branca sentia-me uma rainha. Os meus filhos saíam e iam para a escola, eu ia trabalhar, fazia a minha vida normalmente. Aqui é complicado, porque se sairmos, outras pessoas mexem nas nossas coisas.”
Albertina desconhece por que razão foram mandados embora de lá. “Nunca ninguém veio e marcou uma reunião com a população para dizer: vocês estão aqui ilegalmente. Aqui não se pode viver. Nunca.”
Com a vinda para o Povoado, o que aconteceu a Albertina aconteceu a muitas vizinhas, separadas por uma razão ou por outra dos maridos, a maior parte das vezes porque o excesso de proximidade entre todos matou qualquer intimidade entre eles.
O ajuntamento é atravessado por passagens estreitas, por onde mal circulam, em certos pontos, duas pessoas ao mesmo tempo. Confinado a uma área de 300 por 280 metros, o equivalente a oito campos de futebol, o Povoado não tem para onde expandir. Do lado oposto ao mar, o lixo resvala ao longo de uma arriba a perder de vista, seguindo para sul, como se no planalto que se adivinha existir por cima, onde é o Bairro da Coreia, tivesse sido decretado fazer cá de baixo o seu aterro sanitário.
Nuvens de mosquitos pairam sobre as águas paradas, por entre as estacas que sustentam as barracas mais próximas das margens da laguna. “Há três anos a Organização Mundial da Saúde veio analisar esta água e descobriu todas as doenças. Todas as bactérias estão aqui”, diz Pedro Alexandrino, o coordenador da comunidade para os assuntos religiosos e políticos. Tuberculose, cólera, sarna, febre tifoide, malária. “O mosquito daqui é grosso, é daqueles que quando ferra é mesmo malária.” Mas o pior tem sido a tuberculose. Entre 2017 e 2018, houve 30 mortes provocadas por esta doença.
Este é um artigo exclusivo. Se é assinante clique AQUI para continuar a ler. Para aceder a todos os conteúdos exclusivos do site do Expresso também pode usar o código que está na capa da revista E do Expresso.
Caso ainda não seja assinante, veja aqui as opções e os preços. Assim terá acesso a todos os nossos artigos.