O final de mandato de Ursula von der Leyen à frente dos destinos da Comissão Europeia está a ser conturbado. À investigação sobre as suspeitas de corrupção e conflitos de interesses em torno da compra de vacinas contra a covid-19, soma-se agora mais um escândalo, desta vez sobre a contratação de Markus Pieper, um eurodeputado alemão, que está a gerar um conflito interno na Comissão Europeia.
A polémica começou no início de abril, quando Pieper (que, como von der Leyen, também integra o partido democrata-cristão alemão, a CDU) foi anunciado como o novo representante da Comissão para as Pequenas e Médias Empresas (PME). O eurodeputado foi o escolhido, apesar de ter sido avançado pelo La Matinale Européenne que duas outras candidatas, ambas mulheres, foram preteridas, embora tenham tido melhor pontuação do que Pieper no processo de seleção para o cargo.
A chefe da Comissão Europeia, segundo o site POLITICO, foi questionada na terça-feira, em Berlim, sobre o caso, que já foi denominado de “Piepergate”, garantindo que “todos os processos foram claros, limpos e transparentes, e é por isso que o representante para as PME tem uma posição tão forte”.
Também o comissário do Orçamento e Administração, Johannes Hahn, defendeu a contratação, numa carta divulgada na segunda-feira, explicando que “todos os três candidatos finalistas foram entrevistados e foram considerados geralmente qualificados para o cargo”. Hahn reiterou que “o mérito é o principal critério” e que Pieper era o melhor candidato “com base na sua vasta experiência e currículo no campo das PME”.
O alemão foi escolhido a menos de três meses das eleições europeias para um cargo de cinco anos, no qual irá auferir quase 17 mil euros por mês.
As justificações da presidente e de Johannes Hahn não foram suficientes para acalmar os críticos no Parlamento Europeu e na própria comissão. Depois de terem assinado uma carta conjunta no final de março, quatro dos principais comissários europeus voltaram a questionar a imparcialidade e transparência da contratação de Markus Pieper.
Numa nova missiva a que o POLITICO teve acesso, os comissários Thierry Breton (Mercado Interno), Paolo Gentiloni (Economia), Nicolas Schmit (Trabalho e Direitos Sociais) e Josep Borrell (alto-representante para os Negócios Estrangeiros), afirmaram que “é essencial que a resposta [de Hahn] cubra todos os assuntos levantados pelos membros do Parlamento Europeu”.
Esta quarta-feira, o assunto deverá ser discutido na reunião entre os comissários da União Europeia. No Parlamento, o deputado dos Verdes alemães Daniel Freund avançou com uma proposta para rescindir a contratação de Markus Pieper e para lançar um novo concurso que seja “verdadeiramente transparente e aberto”. A possível rescisão da contratação do eurodeputado conservador alemão deverá ser votada na quinta-feira.
As duas mulheres que não foram selecionadas são a eurodeputada checa Martina Dlabajová e a sueca Anna Stellinger, da Confederação de Empreendedorismo da Suécia. Dlabajová apresentou já uma queixa formal junto da Comissão, questionando se houve respeito pela “política de igualdade de oportunidades expressa no anúncio da vaga”.
Oposição parte de dentro e é mais forte do que o esperado
Ursula von der Leyen teve um início de mandato difícil na Comissão Europeia. Começou por nem sequer ser candidata ao cargo, mas o seu nome foi alvo de consenso entre a Alemanha e França para resolver um impasse em torno da nomeação, ignorando-se, na altura, o processo de nomeação dos “spitzenkandidaten”. Agora, é candidata pelo Partido Popular Europeu (PPE), onde se integram os democratas-cristãos, mas o próximo mandato não está ainda garantido.
Apesar de a antiga ministra da Defesa da Alemanha ser a principal favorita para liderar a Comissão por mais cinco anos, há pontos de interrogação sobre a sua candidatura. A sua nomeação pelo PPE foi confirmada a 7 de março, mas a sua equipa de campanha foi revelada apenas na semana passada (e inclui o próprio chefe de gabinete como líder de campanha).
Além disso, o seu discurso em Atenas no domingo passado, que serviu como lançamento oficial da candidatura, gerou pouco entusiasmo, a avaliar pelas referências nos media. O ‘Financial Times’ considerou, por exemplo, que o discurso “soou como muitos que ela já fez como presidente da Comissão”, focando-se no combate à Rússia, às alterações climáticas e à imigração ilegal.
A carta aberta dos quatro comissários deu sinais, também, de um clima de tensão no arco da governação de von der Leyen, especialmente entre as alas social-democrata e liberal.
Nicolas Schmit, um dos signatários, é candidato dos sociais-democratas europeus do S&D (a principal oposição de centro-esquerda na Europa) para presidente da Comissão; também no S&D estão Josep Borrell, o chefe da diplomacia europeia, e o ex-primeiro-ministro italiano Paolo Gentiloni; e há ainda Thierry Breton, que faz parte do grupo europeu Renew Europe, fundado por Emmanuel Macron (o presidente francês ainda não manifestou apoio à recandidatura de Ursula von der Leyen).
Josep Borrell junta a este escândalo a sua própria insatisfação face às posições externas da líder do executivo de Bruxelas. Após os ataques do Hamas contra Israel, a 7 de outubro de 2023, Ursula von der Leyen viajou até Telavive, acompanhada pela presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, numa demonstração de apoio ao governo israelita - mesmo quando Borrell e outros diplomatas pediram cautela no tom do apoio a Israel, devido à resposta do exército na Faixa de Gaza. A viagem e a forma como von der Leyen se tem sobreposto a Borrell na representação dos interesses externos europeus tem sido um fator de inquietação na diplomacia europeia.
O “Piepergate” surge pouco depois de o POLITICO ter avançado que a procuradoria europeia abriu uma investigação à presidente da Comissão, em torno do uso de mensagens privadas para negociar contratos com a Pfizer para a compra de vacinas contra a covid-19.
O caso foi primeiro avançado pelo ‘New York Times’, e vários órgãos de comunicação noticiaram, também, que von der Leyen terá negociado um acordo de 20 mil milhões de euros com Albert Bourla, o presidente executivo da Pfizer, no pico da pandemia. A Comissão recusou-se, até agora, a revelar as mensagens em causa. A investigação está a ser levada a cabo pelos governos da Bélgica, que avançou com o processo, da Hungria e da Polónia.