Não é como se sair de Gaza antes da guerra fosse uma ocorrência mundana. Tal como agora, cada cidadão tinha de pedir uma autorização especial que passava por pelo menos três entidades: os guardas fronteiriços de Gaza, do Hamas, o Gabinete de Coordenação das Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT), a unidade do Ministério da Defesa israelita que trata dos assuntos civis nos territórios palestinianos ocupados, e as autoridades egípcias.
Havia e há “agentes” egípcios que tratam disto tudo, juntam os dados de cada proponente, toda a documentação que sirva para comprovar que não existem ligações a qualquer grupo proscrito, registo criminal, data de saída e regresso, motivo da viagem, fotocópias de passaportes e permissões anteriores, registo de emprego, etc. É caro. Reem Hammad está literalmente a pedir dinheiro a desconhecidos - e a sau família nem sequer está assim tão confortável com isso.
A família de Reem Hammad, palestiniana de Gaza, atualmente residente em Aachen, na Alemanha, tem todos os papeis em ordem. Costumavam ir ao Egito ver a outra parte da família ou fazer compras com alguma regularidade, Israel já os tinha deixado viajar outras vezes. E talvez agora também deixassem, mas o nome dos oito membros da família Hammad nem sequer está ainda em nenhuma lista para aprovação porque ninguém tem dinheiro para pagar o que o “agente” exige. Antes da guerra, o preço de uma autorização de saída de Rafah para o Egito oscilava pouco, entre os 200 e os 500 dólares para um adulto (entre 185 e 470 euros), neste momento varia entre 4500 e 10.000 dólares por adulto (entre 4175 e 9275 euros) e, para uma criança, o valor está algures entre os 2000 dólares (1850 euros) e os 5000 (4640 euros).
Numa videochamada com o Expresso a partir da sua casa na Alemanha, marcada para a primeira manhã em que pôde deixar os três filhos pequenos na creche depois da interrupção de Páscoa, Reem Hammad emociona-se por segundos quando tem de dizer em voz alta a quantia impossível que está a tentar angariar através de uma página de donativos na internet para poder pedir as autorizações para a sua família: €35 mil.
As contas são feitas por baixo, com valores próximos do mínimo que um agente pode pedir. São seis adultos e duas crianças: €5 mil por adulto e €2500 por criança, dá €35 mil. Nada garante que seja este o montante exigido na altura em que consigam o dinheiro para pôr os nomes nas listas. O preço pode continuar a subir. “Não vai haver um salvador que nos dê o dinheiro todo, só vamos lá se for um esforço coletivo”, diz Reem, sem grande esperança. “Há mesmo muitas famílias a tentar.”
Logo nos primeiros dias da guerra, a 12 de outubro, a família abandonou a casa, e estabeleceram-se em Der Albalah, perto da cidade de Gaza. Um mês depois, veículos militares israelitas invadiram a zona e, “sem aviso”, escreve Reem na página, “começaram a disparar balas verdadeiras e morteiros, provocando um pânico histérico nas crianças”. A família saiu de onde estava com lençóis brancos atados a paus e entrou na massa de gente que se dirigia a sul.
As redes sociais Facebook e Instagram estão cheias de partilhas de histórias em tudo semelhantes à de Reem. A página no site “Go Fund Me” tem fotografias da família toda: o pai, Saed, 65 anos, a mãe, Maha, 54, a irmã mais velha, Malak, 32, a mais nova, Nada, 23, o irmão, Ali, 34, a sua mulher, Israa, 31, e os seus filhos. Saed, como o avó, tem sete anos e Sobhi apenas 11 meses. Também há fotografias de Reem com a família e das casas totalmente destruídas na sequência de ataques israelitas.
Não foi fácil criar a página, a família não queria, “sentiam imensa vergonha de estar naquela situação”, diz Reem. “Além de sentir vergonha em pedir dinheiro, no islão é considerado haraam, proibido, usar posses financeiras para atingir uma posição de superioridade ou prioridade em relação a outrem que de outra forma não seria obtida.” Por isso a família, muito religiosa, tal como a própria Reem e o marido, que casaram mediante acordo das famílias sem se conhecerem antes, recusou dar permissão para aparecer numa página da internet com um pedido de doações associado. Reem teve de ir buscar a parte do Corão onde diz que tudo é permitido para salvar uma vida humana e finalmente conseguiu convencê-los.
A irmã mais velha de Reem tinha algum dinheiro de lado, desenhava sites para empresas privadas e ONGs, e poderia ter conseguido pagar duas ou três autorizações. Só que os Hammad nunca tinham pensado sair de Gaza até há poucos dias, quando os vizinhos que não vieram para Sul lhes enviaram imagens e vídeos de montes de entulho no lugar onde estava o prédio de sete andares onde a família vivia, no bairro de Rimal, a três quilómetros do centro da cidade de Gaza, capital do território. Eram sete andares, sete apartamentos, sete famílias, todas ligadas entre si por laços de parentesco mais ou menos próximos. Já nada existe.
Estão todos em tendas, numa cidade que tinha 280 mil habitantes antes da guerra e agora tem 1,7 milhões, concentrados em 24 km2. “Choro de cada vez que os vejo, não há eletricidade nem gás, não há água para higiene nem sequer para beber, quanto mais para lavar roupa e utensílios de cozinha!” O dinheiro da irmã foi sendo usado para comprar leite, fraldas e a escassa fruta que aparece nos mercados, para garantir que os sobrinhos ingerem algumas vitaminas.
Destruição literal de um sonho
Há sete anos a viver na Alemanha, está integrada, escorrega para a língua alemã em conversa, os filhos nasceram lá e o marido é um engenheiro de telecomunicações “altamente talentoso e qualificado”, conta Reem. Indica o site do instituto onde ele é um dos principais investigadores: Fraunhofer-Gesellschaft, um dos maiores centros de investigação e inovação alemães, com 76 polos por todo o país.
Desde o dia em que saíram de Gaza, começaram a juntar dinheiro para um projeto comum e no ano passado concretizaram-no: compraram um terreno e começaram a construir uma casa. Em Gaza. A olhar para o terreno, ninguém consegue dizer que ali houve um sonho edificado. “Já tínhamos quase tudo montado e mobilado, a cozinha toda, que é o mais caro, estava praticamente pronto, mas, poucos dias após o início da guerra, a área onde estava a nossa casa, novinha, foi arrasada. Já não temos nada, literalmente nada.”
Tanto a família de Reem como a do marido, que também está em Gaza, vivem com as remessas que ele envia todos os meses. Cerca de 20 pessoas dependem do dinheiro deste “engenheiro talentoso”. E não chega: até os enlatados, o arroz e a farinha, os únicos produtos que ainda há, apesar de em quantidades muito inferiores às necessárias, têm preços proibitivos. Meio quilo de arroz custava cerca de um dólar (€0,90) antes da guerra; agora custa 11 dólares (€10). A farinha não chegava aos 0,40 dólares (€0,30), agora custa quase nove dólares (€8,30). “Não temos nada que possamos vender. Até vendíamos a nossa casa nova se ela existisse, mas quem vai comprar uma casa que pode ser destruída em segundos?”
Usar poupanças para comprar fruta
O Egito, em paz com Israel há décadas e peça central das tentativas de negociações de cessar-fogo e libertação de reféns, resiste há muito a abrir a passagem de Rafah, receando que uma fuga de dezenas de milhares de pessoas para a península do Sinai possa gerar problemas de segurança.
O Presidente, Abdel Fattah al-Sisi, afirmou que o afluxo em massa de refugiados de Gaza abriria um precedente para a deslocação de palestinianos da Cisjordânia para a Jordânia, permitindo cumprir o sonho da fação mais extremista da política israelita: tomar toda a Palestina histórica e chamar-lhe apenas Israel. Essa ala radical já fala abertamente, mesmo com meios de comunicação internacionais, de voltar a construir colonatos em Gaza. É difícil para Reem e para a sua família acreditar que, se saírem, vão poder voltar. Esse é um problema futuro, há outros mais perto: as doenças, a sede, os ratos, a fome.
Sem provas de compra
O contacto de Reem para a possível extração dos parentes é com uma empresa de transporte de passageiros na cidade egípcia de Nasser. O serviço dos agentes não é considerado ilegal, na medida em que toda a gente sabe que existe e não há restrições das autoridades, mas as famílias têm poucas garantias em relação ao destino do seu dinheiro. “O que fazem é registar o nome das pessoas, mas é preciso alguém ir pessoalmente a Nasser pôr o nome na lista. No nosso caso foi a mãe do meu marido. Não há papel que possamos trazer, apenas verificar que escrevem os nomes numa folha. Não escrevem sequer quanto dinheiro lhes demos”, diz Reem, a abanar a cabeça. O que tem ouvido dizer é que o dinheiro é devolvido às famílias às quais Israel não permite passagem. De outra forma os agentes perderiam a credibilidade — e o negócio.
Depois de conseguirem pôr os nomes na lista, as pessoas esperam mais de um mês para serem chamadas para a fronteira e ali “esperam em condições desumanas, dormem no chão, às vezes dias, só porque um guarda qualquer não estava com bom humor ou não recebeu bom suborno”. Isto já acontecia antes da guerra, Reem dormiu com o seu filho bebé no chão da passagem de fronteira porque a pessoa à frente dela na fila chateou o guarda “e ele, de mau-humor, não deixou mais ninguém passar”.