Guerra no Médio Oriente

“Há uma orquestra de desestabilizadores, e o maestro é o Irão.” Não retaliar depois do ataque na Jordânia “não é opção”. E agora, Biden?

Joe Biden não pode não responder, e já disse que vai responder. Domingo, um ataque com drones a uma base dos Estados Unidos na Jordânia matou três militares e feriu mais de 20. É a primeira vez, desde 7 de outubro, que há um ataque contra posições americanas na Jordânia. Um dos grupos do chamado Eixo da Resistência, coletivo informal de países e milicias anti-Ocidente coordenado pelo Irão, já reinvidicou o ataque. Isso deixa a Biden duas opções: ou atinge de forma cirúrgica as posições conhecidas deste grupo ou mostra ao Irão que já chega de recados. Desde o ataque do Hamas a Israel, foram pelo menos 150 os ataques a posições americanas na região

Mural em Sana, homenageando líderes do “eixo da resistência” apoiado pelo Irão, entre os quais o atual chefe do Hezbollah, Hassan Nasrallah (o segundo a contar da direita)
KHALED ABDULLAH / REUTERS

Desde 7 de outubro, quando o ataque terrorista do Hamas no sul de Israel virou os olhos do mundo de novo para o Médio Oriente, as bases militares dos Estados Unidos espalhadas pela região foram atingidas pelo menos 150 vezes, segundo as contas do painel de analistas do instituto de análise de assuntos internacionais Atlantic Council. Mísseis, morteiros, drones… o tipo de armamento varia, a origem do mesmo é só uma: o Irão.

No domingo, três militares americanos foram mortos num ataque com drones a uma base dos Estados Unidos no noroeste da Jordânia, a chamada “Tower 22”, perto da fronteira com a Síria, e onde residem cerca de 350 militares. O Comando Central dos Estados Unidos, citado pela agência Associated Press, informou que além dos mortos, 25 militares ficaram feridos no ataque. Um oficial da defesa americano disse ao jornal “The Washington Post” que o ataque atingiu os dormitórios da base, causando ferimentos que variaram de cortes e contusões a traumas cerebrais.

O ataque foi reivindicado por um grupo que se autodenomina Resistência Islâmica no Iraque, constituído por milícias ligadas ao Irão, incluindo o Kataib Hezbollah e o Harakat Hezbollah al-Nujaba.

O Presidente dos Estados Unidos afirmou que, apesar de ainda ser preciso reunir mais informações sobre o que realmente aconteceu, vai haver retaliação. Condenou o “ataque desprezível e totalmente injusto” e prometeu ajuste de contas “no momento e da forma” que os Estados Unidos decidam.

Joe Biden não pode voltar atrás. É esta a opinião de três analistas ouvidos pelo Expresso. A dificuldade será determinar a posologia da retaliação. “O Presidente disse claramente que vai retaliar, por isso não pode voltar atrás. Há duas opções: uma é identificar com clareza a origem do ataque e lançar ataques fortes, mas localizados, logo, com menos potencial de escalada; outra é atacar diretamente o Irão, pouco aconselhável, na minha opinião, apesar da pressão forte sobre Biden neste ano eleitoral”, começa por dizer ao Expresso Kelly Grieco, investigadora da área de Defesa do Reimagining US Grand Strategy Program, do think tank Stimson Centre.

Este ataque, refere, nem sequer foi mais intenso que outros, apenas “resultou”. “Há uma presença militar significativa dos Estados Unidos, há muitas oportunidades e alvos. Mesmo que as defesas antiaéreas estejam sempre a funcionar, algum ataque haveria de causar perdas humanas. Este não foi um ataque mais grave, foi só um que resultou”.

O major-general Arnaut Moreira analisa a pressão do Partido Republicano sobre Biden de dois pontos de vista. Primeiro, a que Trump protagoniza, dizendo que consigo este ataque nunca aconteceria. Isso é ,inverificável até porque houve ataques a bases dos Estados Unidos durante a sua presidência.

A outra é a que está a ser explorada pelos congressistas republicanos que apostam numa escalada do conflito, ou seja, num ataque direto ao Irão. “Entre o homem que não propõe soluções específicas e propostas de resposta direta a um inimigo, Biden fica com pouco espaço de resposta”. Se recuar, “vai transparecer que há mesmo uma fraqueza, deixa de ser perceção”, e os republicanos “podem conseguir fazer passar a ideia de que é precisamente a fraqueza que alimenta estes ataques”.

Segundo a investigadora Diana Soller, do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova, em Lisboa, a administração Biden não tem grande apetite por operações militares muito longas ou abrangentes, só que há uma doutrina antiga que obriga à intervenção. “Mesmo antes de se tornar uma potência mundial, os governos dos Estados Unidos sempre colocaram o cidadão americano acima de tudo e levaram a cabo pequenas guerras exclusivamente em prol da segurança dos seus cidadãos. Daí que seja quase impossível não haver retaliação. Faz parte dessa tradição e é necessário dar provas de vida”.

Um grupo de iranianos manifestam-se a favor da liberdade palestiniana no centro de Teerão
ATTA KENARE

Os pedidos de “pulso forte” com o Irão não vêm apenas da oposição mais direta a Biden. Vários académicos defendem uma resposta mais musculada. Teerão mantém, todavia, que não teve papel neste ataque. “Como já dissemos claramente, os grupos de resistência na região estão a reagir aos crimes de guerra e ao genocídio do regime sionista, que mata crianças, e não recebem ordens da República Islâmica do Irão. Estes grupos decidem e atuam com base nos seus próprios princípios e prioridades, bem como nos interesses do seu país e do seu povo”, afirmou o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, Nasser Kanaani, citado pela televisão jordana IRNA esta segunda-feira.

A missão do Irão junto das Nações Unidas afirmou, num comunicado divulgado pela IRNA, que Teerão “não tem qualquer ligação e não tem nada que ver” com o ataque. Atribui-o ao “conflito entre as forças americanas e os grupos da resistência na região”.

Quais são os objetivos deste ataque?

Desde 7 de outubro, o Irão acionou todos os seus exércitos por procuração para criar uma desestabilização muito forte, que visa fazer tremer a posição dos Estados Unidos na região”, diz Soller. É uma análise mais direta. A mais remota, porventura menos óbvia, nem por isso é menos preocupante. “A China tem já um esboço desenhado, através dos BRICS, para erodir a influência dos Estados Unidos, e quer a Rússia quer o Irão beneficiam disso. Tirar Israel do mapa é objetivo do Eixo de Resistência, mas a ideia de que os Estados Unidos possam perder prestígio é o grande objetivo da China”, acrescenta a perita, referindo-se à coligação informal de países e grupos armados, liderada pelo Irão, que lutam contra a hegemonia dos Estados Unidos e do Ocidente.

“O Irão não está particularmente confortável, até porque a cada ataque lá vem um porta-voz frisar com muita veemência que não estiveram envolvidos. Claro que os exércitos-satélite do eixo estão bem armados, e só o Irão pode estar por trás disso, mas existe um grau considerável de autonomia destes grupos, que os pode levar a agir sem mandado direto”, acrescenta a investigadora.

Arnaut Moreira não diverge muito. “O principal objetivo é degradar a vontade ocidental de estar presente no Médio Oriente, mostrar que não é possível às forças ocidentais serem uma voz na região, uma força de paz.” Para o major-general, estes ataques “corroem a vontade, minam a segurança, criam e depois alimentam uma narrativa que satisfaz a China e a Rússia, que é precisamente essa de mostrar a incapacidade do Ocidente de ser uma voz respeitada e uma voz pacífica na região”.

A estratégia passa por desencadear uma reação que possa ser enquadrada na teoria de que os Estados Unidos reagem de forma exagerada. “Os hutis começaram por atirar sobre cargueiros, sabendo que acabariam por receber forte retaliação. E qual é o objetivo? Obviamente, mostrar como a reação do Ocidente é desproporcionada e que não somos um parceiro para a paz.”

É por isso que Arnaut Moreira vê um ataque sobre o Irão como a última escolha possível. “Uma coisa dessas poderia desencadear um conflito de proporções e duração imprevisíveis, por causa das possíveis reações em cadeia”. Acredita que Biden “está à procura de saber exatamente quem levou a cabo o ataque, no sentido de enviar uma mensagem muito forte a essa organização”. Um ataque ao Irão seria “uma declaração de guerra entre sistemas que neste momento não interessa a ninguém”.

Soller concorda: “O Irão está a desenvolver capacidade nuclear, é o último momento em que querem atenção ou ataques”. No entanto, há uma encruzilhada em que o próprio Irão se meteu. “Há uma orquestra de desestabilizadores, e o maestro é o Irão. Só que estão num dilema: criaram um conjunto de parceiros para fazerem o seu trabalho sujo, mas, ao mesmo tempo, estão permanentemente preocupados com a possível retaliação dos americanos”.

Consequências para o conflito em Gaza

As notícias que chegam de meios de comunicação americanos parecem mostrar esperança num potencial acordo: Israel suspenderia as operações militares contra o Hamas em Gaza dois meses em troca da libertação de mais de 100 reféns capturados no ataque de 7 de outubro. A Associated Press, que avançou a notícia com base em duas entrevistas com pessoas próximas das negociações, escreve que esse acordo teria duas fases: num primeiro momento, os combates teriam de cessar, para permitir a libertação de reféns em situação mais vulnerável. Numa segunda fase, Israel e o Hamas passariam a discutir a libertação de homens e soldados israelitas e, durante ambas as fases, a entrada de ajuda humanitária teria de ser significativamente maior do que a que está agora a chegar à população.

Kelly Grieco pensa que a retaliação vai determinar que capital político resta aos Estados Unidos nestas negociações. “Tudo acontece num momento muito importante, porque há negociações a decorrer que parecem próximas de resultar num cessar-fogo e na libertação de reféns. Tudo o que os Estados Unidos fazem tem impacto. Uma retaliação exagerada pode fazer decrescer a confiança dos atores locais nos nossos negociadores, porque, de repente, estamos de novo a falar sobre o potencial para uma escalada da guerra, em vez de estarmos a falar deste acordo que pode levar a uma pausa de dois meses nos bombardeamentos em Gaza”, diz a analista.

Grieco deixa uma proposta de reflexão existencial. “A pergunta que deveríamos estar a começar a fazer aos governantes aqui nos Estados Unidos é se os interesses dos americanos estão a ser bem servidos ao continuarmos com esta presença militar nalguns países do Médio Oriente. Os benefícios para os Estados Unidos e para a paz na região compensam o potencial de escalada que esta presença representa? Acho que não, o risco de escalada é bem maior do que os potenciais benefícios.”