Os Médicos Sem Fronteiras já não têm nenhuma clínica no norte da Faixa de Gaza. Parte da equipa que esteve a trabalhar durante as primeiras semanas da guerra foi retirada do território, e outro grupo de médicos chegou há poucos dias ao sul. Em entrevista ao Expresso, o coordenador da equipa, Christopher Garnier, mostra-se aliviado com a perspetiva de cessar-fogo, mas nota que as dificuldades dos milhares de pessoas que vivem em redor de Khan Younis, onde os MSF se estabeleceram, não se resolvem com quatro dias de pausa.
Os 13 médicos da equipa de Garnier estão a ajudar em dois locais principais: o hospital Nasser, nas áreas de cirurgia, cirurgia plástica, queimadura, e num dos principais centros de saúde da cidade. Voltar para norte é, para já, “impossível”, mas Garnier garante que a equipa vai estar atenta e, assim que possível, regressar para ajudar.
É comum receberem aquilo a que chamam “feridos em massa”, porque esta é “uma guerra muito intensa num sítio muito pequeno”. Por isso, os prédios caem sobre si mesmos, deixando dezenas de pessoas soterradas. Há três dias receberam 100 pacientes de uma vez, 70 morreram no hospital ou já chegaram mortos.
“São qualquer coisa como 365 metros quadrados, com um máximo de 10 quilómetros de largura, de cada vez que há ataques aéreos ou de tanques, há baixas por todo o lado”
Quais são as principais dificuldades de um médico em Gaza?
O combustível é um grande problema no sul de ,Gaza porque tudo depende do combustível, da eletricidade e da energia. Temos painéis solares, mas há muita coisa que precisa de combustível, por exemplo as bombas de água e a dessalinização, a deslocação das ambulâncias, o funcionamento de máquinas nos hospitais, etc. É difícil, e começa a haver escassez de alguns alimentos. O mercado está a ficar cada vez mais vazio, todos os dias, ainda há legumes e frescos porque a época é boa, mas não sabemos por quanto tempo e, além disso, não há gás nem eletricidade. É muito complicado cozinhar, até porque também não há carvão. Por cima disto tudo estão sempre a cair bombas.
O que significa que recebem com frequência pessoas com múltiplos ferimentos, fraturas, etc. Até agora têm conseguido dar conta das coisas que são, por assim dizer, tratáveis?
A situação é mesmo grave, os ferimentos que vemos são verdadeiramente horríveis. Há três dias recebemos, no hospital onde estamos a ajudar, o Nasser, aquilo a que chamamos feridos em massa, que é quando alguma bomba ou desmoronamento de um edifício desencadeia um nível de feridos muito elevado, e chegam todos ao mesmo tempo ao hospital. Recebemos 100 pacientes todos em estado crítico, 70 morreram ou já chegaram mortos.
“É uma guerra muito intensa num sítio muito pequeno. Se repararmos nas fotografias e vídeos que mostram a destruição nas casas, vemos que estão completamente destruídas, não é apenas parte, ou alguns danos nas paredes ou janelas, a destruição é total”
Os números que chegam do Ministério da Saúde de Gaza tendem a ser questionados. Pelo que tem visto aí, há razão para duvidarmos?
É muito difícil indicar números certos de mortos ou feridos. Posso dizer que a situação é grave. O conflito é muito, muito tenso e Gaza tem uma área muito pequena para a quantidade de pessoas e edificado. São qualquer coisa como 365 metros quadrados, com um máximo de 10 quilómetros de largura. De cada vez que há ataques aéreos ou de tanques, há baixas por todo o lado. Se repararmos nas fotografias e vídeos que mostram a destruição nas casas, vemos que estão completamente destruídas, não é apenas parte, ou alguns danos nas paredes ou janelas, a destruição é total. Há muita gente que fica soterrada.
Os ataques aos hospitais e as batalhas nas suas imediações levaram os MSF a cancelar atividades no norte de Gaza. Três médicos que trabalhavam convosco morreram na semana passada. A atividade médica devia poder prosseguir durante a guerra mas o que se vê é que não está a ser possível.
Infelizmente, de há uns anos para cá, e isto não é problema específico daqui, as infraestruturas de saúde têm sido atacadas. Mesmo que nós, médicos, não sejamos diretamente visados — pelo menos não creio que os MSF [que morreram] fossem o alvo —, tornamo-nos também vítimas. Acho que houve uma altura em que podíamos pensar que sermos humanitários nos protegeria, mas hoje não há qualquer garantia, isso está só no papel.
Espera-se alguma paz nos próximos dias, pelo menos por quatro dias. Acha que pode durar?
Seja pouco ou muito tempo, um cessar-fogo é sempre uma boa notícia, mas, muito honestamente, quatro dias não são de todo suficientes para se poder sentir alívio, para que se reorganize alguma coisa nos hospitais, por exemplo. A única coisa que espero que aconteça é que entre mais ajuda humanitária e que talvez mais pessoas no norte se sintam seguras para virem para para sul. Mesmo que o façam, as condições de vida aqui são precárias, esta pausa é uma pequena gota no oceano. E, depois, temos de ver se vai ser respeitada. É o primeiro cessar-fogo, por isso vamos ver. Quer dizer, se for respeitado durante quatro dias já é bom, será como um pouco ar fresco nesta confusão.
Além dos ferimentos provocados pelas bombas, médicos têm vindo alertar para o perigo de propagação de doenças respiratórias. Até houve uma altura que se falava do medo da cólera.
Tentamos prestar atenção a tudo, mas temos recursos limitados. É verdade que todas as escolas estão ocupadas, são utilizadas como abrigos por civis, e mesmo os hospitais servem de abrigos, porque as pessoas não têm para onde ir. Por isso, sim, é uma grande preocupação, as pessoas estão muito juntas. Há uma semana estávamos todos muito assustados, quando chegámos, por causa da falta de combustível. Não havia absolutamente nenhum combustível, e o sistema de esgotos paralisou. Depois a ONU conseguiu que entrasse algum combustível, e o escoamento lá foi reiniciado. Espero que evitemos um surto de cólera, era uma das principais ameaças há dias.
“Há pessoas a viver em cada esquina, cada reentrância, escolas, hospitais, parques, carros. Mas quando se sai um pouco do centro da cidade, é como se fosse uma cidade-fantasma”
A zona sul continua a ser atacada, as pessoas tendem a afastar-se do centro ou são tantas que não há hipótese de se espalharem?
É o contrário, na verdade. Há pessoas a viver em cada esquina, cada reentrância, escolas, hospitais, parques, carros. Mas quando se sai um pouco do centro da cidade, é como se fosse uma cidade-fantasma. É uma sensação muito estranha. Há uma parte onde não há absolutamente ninguém, não há circulação, não há vida, ou muito pouca. E depois, duas ruas à frente, de repente vê uma grande multidão de pessoas.
Que vos dizem as pessoas?
Dizem que é muito perturbador não existir um único sítio seguro, nem um. Estão muito ansiosas pelo futuro. Perguntam-se que se segue. As pessoas que vieram do Norte não sabem que vai acontecer depois. Mesmo que haja paz — e haverá paz um dia, de certeza —, que se segue para eles? Como é que vão reconstruir a propriedade? Como vão recuperar a sua vida? Algumas casas ainda existem, outras foram destruídas.