“Shifa” significa “cura” em árabe, mas, nas primeiras horas desta quarta-feira, o maior hospital de Gaza, tornou-se no grande foco do conflito entre Israel e o Hamas. Quando as Forças de Defesa de Israel anunciaram a entrada no hospital Al-Shifa (passavam poucos minutos das 00h00, em Lisboa, e das 2h00, em Gaza), disseram tratar-se de uma “operação precisa e direcionada contra o Hamas, numa área específica” do complexo. O edifício já vinha a ser cercado por intensos ataques nas imediações e Joe Biden já tinha alertado que as instalações hospitalares deveriam ser ”protegidas", declarações essas que levam a crer que os pedidos de cessar-fogo e a pressão internacional podem vir a aumentar. Não é, contudo, de desprezar que fixar um hospital com pelo menos 1200 pacientes como um local crítico de conflito marca uma escalada da ofensiva. Mas valerá a pena fazê-lo agora?
Israel sustenta que o grupo que controla o enclave “explora sistematicamente hospitais para fins militares”, afirmando, também, que o Hamas tem conduzido operações a partir do Al-Shifa, alegações que as secretas dos EUA corroboraram na terça-feira. O grupo que controla o território de Gaza nega, insiste que não está a esconder armas no local e afirma que acolheria com agrado uma equipa internacional que o quisesse inspecionar. Os serviços de segurança israelitas apoiam-se em registos que remontam a 2014, durante a “Operação Margem Protetora”, durante a qual o Hamas teria transferido o centro de comando e de operações para o subsolo do hospital Al-Shifa. Nos últimos dias, o empenho que os guerrilheiros demonstraram na defesa do hospital adensaram as suspeitas.
Mas o material apresentado por Israel como evidência de que o Al-Shifa tenha, debaixo das suas instalações, um bunker central para gerir a rede extensa de túneis ("uma cidade dentro de outra cidade") é escasso. A “CNN” avançou, na terça-feira, que um dos seus jornalistas que acompanhava os movimentos das Forças de Defesa de Israel encontrou armas e explosivos numa divisão localizada abaixo do hospital pediátrico Al-Rantisi.
As Forças de Defesa de Israel também acusam, há dias, o Hamas de usar “escudos humanos”. Por definição do Tribunal Penal Internacional, o crime de guerra diz respeito à “utilização da presença de um civil ou outra pessoa protegida para tornar certos pontos, áreas ou forças militares imunes a operações militares”. Como seria crime de guerra atacar na proximidade de áreas densamente povoadas ou até, neste caso, de instalações que deveriam ser protegidas de acordo com as convenções de Genebra - incluindo escolas, hospitais ou mesquitas -, o Hamas pode estar a esconder-se por trás da população civil de Gaza.
Em entrevista ao Expresso, na terça-feira, Ahron Bregman, analista de Ciência Política que trabalha no ‘think tank’ King's College London, mas que nasceu em Israel e combateu ao lado das suas forças, admite que, apesar de não terem sido apresentadas provas consistentes, a teoria tem lógica. “Penso que é uma suposição que faz sentido: que é nos hospitais que se encontra a sede”, referiu. “Acredito que, quando descerem no hospital Al-Shifa, vão encontrar algo. Se eu fosse líder do Hamas, colocaria um centro de operações ali, porque quereria protegê-lo.” E explicou: “Quando os judeus lutaram contra os britânicos na Palestina, antes de Israel se ter estabelecido, mantinham todas as armas por baixo da sala de jantar ou em jardins de infância. É o que se faz. Faria sentido, porque Israel não pode simplesmente bombardear um hospital.”
Apesar de assumir que a acusação é provavelmente certeira, Bregman considera “terrível” a ideia de entrar num hospital. “Provavelmente os comandantes já se foram embora, já seguiram para o Sul, porque sabiam que os israelitas estavam a chegar. Então, por que é que os israelitas têm de entrar? É simbólico, querem mostrar ganhos, conquistas, ao seu povo. É uma forma de dizer: “A grande tarefa de erradicar o Hamas não vai funcionar. Então, pelo menos, podemos afirmar que matámos 11 mil pessoas, que ocupámos Al-Shifa e destruímos a sede que lá se encontrava”.”
Um alto funcionário militar israelita disse, nesta quarta-feira, que já tinham sido encontradas “armas e infraestruturas terroristas” durante a operação em curso, noticia o jornal “The Guardian”. O responsável adiantou ainda aos jornalistas que quatro membros do Hamas morreram num confronto no exterior e que não houve combates dentro do complexo hospitalar. Um jornalista da agência AFP garantiu que esta manhã soldados israelitas conduziram interrogatórios a pessoas no hospital, entre as quais médicos e pacientes. Já um porta-voz do Ministério da Saúde de Gaza, Ashraf al-Qidra, disse à “Al Jazeera” que a cave estava a ser revistada e que os bombardeamentos não tinham parado.
Militares israelitas terão fornecido rotas de evacuação para os civis que pudessem sair. Com 12 horas de antecedência, foi também emitido um aviso às autoridades de Gaza: qualquer operação militar no interior deveria ser suspensa. “Todos os terroristas do Hamas presentes no hospital devem render-se”, dizia a nota. O Exército de Israel advoga ainda que foi entregue equipamento humanitário ao hospital Al-Shifa. Nas redes sociais, foram publicadas fotografias de um soldado ao lado de caixas com as inscrições “comida para bebés” e “material médico” (em inglês).
O hospital está sem eletricidade, água potável e alimentos há vários dias, apesar de abrigar cerca de nove mil pessoas, incluindo deslocados, pessoal médico e pacientes, entre os quais 36 bebés prematuros. De acordo com o “Guardian”, as condições no complexo hospitalar agravaram-se de tal forma que os procedimentos médicos têm sido realizados sem anestesia. Há famílias a “viver” nos corredores, contando com refeições reduzidas ao mínimo e tendo de suportar o cheiro dos corpos em decomposição que ali se acumulam. A Organização Mundial da Saúde disse que havia 500 camas hospitalares em Gaza antes do conflito que irrompeu a 7 de outubro, mas existem agora cerca de 1.400. Tal como Tedros Ghebreyesus, também António Guterres, secretário-geral da ONU, já se tinha manifestado “profundamente perturbado” dadas as numerosas mortes em contexto hospitalar.
Mas esta não é a primeira vez que o Al-Shifa é alvo da violência entre israelitas e palestinianos. Construído em 1946, durante o domínio britânico, dois anos antes de o Reino Unido se retirar da Palestina, o hospital tem sido palco de confrontos regulares nas proximidades, que, por vezes, atingiam o edifício. A 9 de dezembro de 1987, o primeiro dia da primeira revolta contra a ocupação israelita, durante a qual o Hamas foi formado, o hospital foi novamente arrastado para o conflito, e gás lacrimogéneo foi lançado no pátio do complexo.
Também em 1994, as forças de segurança do líder da Organização para a Libertação da Palestina, Yasser Arafat, hastearam a bandeira palestiniana sobre o hospital, depois de os palestinianos terem garantido uma autonomia limitada em Gaza. Mas, desta vez, o Hamas culpa o Presidente norte-americano pela incursão militar, alegando que, com as suas acusações deu “luz verde” a Israel para “cometer mais carnificinas contra civis”. Dias antes, naquele hospital, recém-nascidos prematuros foram fotografados, alinhados e sem qualquer proteção contra a humidade e temperatura, para que os seus corpos se aquecessem, depois de as incubadoras deixarem de ter energia para funcionar. ”Os israelitas dizem que não acreditam neles, mas talvez devam acreditar, porque faz sentido que a incubadora tenha parado de funcionar, se não há energia", disse ao Expresso o analista Ahron Bregman. “Não é uma boa ideia fazer algo tão desumano como isto. É possível procurar outras soluções, como pedir a um enviado de Portugal que vá ao hospital e verifique por eles. Mas tudo se resume a mostrar conquistas.”