Guerra na Ucrânia

Tensão entre Prigozhin e o Kremlin atinge ponto sem retorno: líder do Grupo Wagner ameaçado com prisão por "incitamento à rebelião"

Pode ser a gota de água final num copo que estava prestes a transbordar. O líder do Grupo Wagner voltou a fazer declarações atrevidas contra o Kremlin, mas desta vez a ameaça é real: Prigozhin garante que “a justiça no Exército será restaurada, e, depois, [virá] a justiça para toda a Rússia”. Os serviços de segurança russos anunciaram a abertura de uma investigação criminal e garantem que Prigozhin pode enfrentar “prisão iminente”

Yevgeny Prigozhin
Mikhail Svetlov

O líder do Grupo Wagner está a ser investigado pelos serviços federais de segurança da Rússia por “incitamento a motim”, depois de ter acusado o Exército russo de lançar um ataque com mísseis contra as suas tropas, noticia a BBC. O anúncio do processo criminal pelos serviços de segurança russos revela que Prigozhin pode enfrentar “prisão iminente” pelos seus comentários sobre a organização de uma “marcha de justiça” contra os seus inimigos no Ministério da Defesa, embora Prigozhin tenha negado que estivesse a provocar um golpe militar.

O general Vladimir Alekseyev, o número dois das secretas militares russas, reagiu de forma dura às mais recentes declarações de Yevgeny Prigozhin, adianta o jornal “The New York Times”. “É uma facada nas costas do país e do Presidente”, disse, apelando também aos combatentes liderados por Prigozhin para que cancelem qualquer rebelião. “É um golpe.”

O canal de televisão estatal russo citou os serviços de segurança federais da Rússia (FSB), que afirmaram que as declarações e ações de Prigozhin equivalem a um apelo a um conflito civil armado. Segundo o “New York Times”, já circulam imagens nas redes sociais que mostram veículos militares blindados posicionados nas ruas da cidade de Moscovo, e a agência de notícias estatal Tass reporta que “as medidas de segurança foram reforçadas” nas principais instalações governamentais e de transportes.

Yevgeny Prigozhin, o líder do grupo paramilitar Wagner, denunciou, nesta sexta-feira, que as forças russas regulares atacaram as tropas mercenárias. Em consequência, garantiu o empresário, os mercenários conduzirão uma marcha - e não um “golpe” - por “justiça”, em retaliação contra a liderança militar russa. Segundo Prigozhin, o “mal” da liderança russa deve ser travado.

“Estávamos prontos para fazer concessões perante o Ministério da Defesa, entregar as nossas armas”, referiu o líder dos mercenários, numa mensagem em áudio divulgada pelos seus representantes. "Hoje, vendo que não fomos derrotados, eles realizaram ataques com mísseis nos nossos acampamentos de retaguarda."

O alegado bombardeamento contra as forças do Grupo Wagner, com pesadas baixas, terá ocorrido horas depois de Prigozhin ter mais uma vez atacado os líderes militares russos, garantindo que enganaram Vladimir Putin para que o Presidente russo se decidisse pela invasão da Ucrânia. Sergei Shoigu, ministro da Defesa russo, rejeitou as acusações de ataque por parte das forças regulares e asseverou que as declarações de Prigozhin “não correspondem à realidade” e que eram “uma provocação”.

Nesta sexta-feira, num vídeo divulgado no Telegram, o alegado aliado de longa data de Vladimir Putin questionou as motivações de Moscovo para iniciar a guerra, a 24 de fevereiro de 2022. Prigozhin alegou que o Ministério da Defesa da Rússia "está a tentar enganar a sociedade e o Presidente e dizer que houve uma agressão infame da Ucrânia, e que eles [ucranianos] pretendiam atacar o território russo, juntamente com toda a NATO".

Trata-se de uma “bela narrativa”, nas palavras do líder dos mercenários, que agora a rejeita: “A operação especial foi iniciada por um motivo diferente.” A outra razão seria, de acordo com Prigozhin, a intenção do ministro da Defesa russo de se tornar marechal - o título mais elevado nas Forças Armadas russas, que só um antigo ministro da Defesa até hoje recebeu - e receber honras militares. A invasão teria sido ainda uma tentativa de adquirir “bens materiais” para distribuir entre as elites russas, prosseguiu Prigozhin.

A desobediência de Yevgeny Prigozhin foi ainda mais longe: o empresário afirmou que a guerra não era necessária para “desmilitarizar ou desnazificar a Ucrânia”, ao contrário do que os representantes do Kremlin têm vindo a alegar. Apesar dos ataques à liderança militar russa, o chefe dos mercenários voltou a não criticar Putin explicitamente. A cautela pode ter uma de várias explicações, segundo os analistas ouvidos pelo Expresso. A proposta de Kelly Grieco, investigadora do Reimagining US Grand Strategy Program do think tank Stimson Center, era de que a disputa entre Prigozhin e Shoigu era até favorável a Putin, que, assim, dividia “para reinar”, vendo as culpas pelos fracassos militares divididas entre dois protagonistas que não ele próprio.

Vlad Mykhnenko, investigador ucraniano na Universidade de Oxford e especialista em geopolítica euroasiática, analisou, contrapondo, que Prigozhin quer apresentar-se como o “soldado russo honesto que não pode vencer a guerra porque os gatos gordos roubaram tudo”. Mas um dia, diz o analista, “esse boneco pode tornar-se o mestre dos fantoches”. Também Sergej Sumlenny, especialista em questões da Europa de Leste e antigo diretor da organização política ecologista Heinrich-Böll-Stiftung, em Berlim, considerou que Prigozhin já se vê numa luta política mortal. “Tem claramente objetivos políticos, provavelmente à altura das ambições presidenciais. Quão realistas eles são é outra questão. Há meses que ele tenta criar uma imagem de líder nacional forte, capaz, brutal, mas justo. Essa imagem normalmente encaixa-se no sonho que os russos têm sobre um bom líder. É comparável aos ditos de Putin nos seus primeiros anos, sobre matar terroristas em casas de banho.”

Em linha com tais declarações inflamadas, Prigozhin afirmou, nesta sexta-feira: “Aqueles que dizimaram os nossos rapazes, que destruíram a vida de muitas dezenas de milhares de soldados russos, serão punidos. Peço que ninguém resista. Vamos considerar todos os que resistirem como uma ameaça e vamos destruí-los de imediato. Isto inclui quaisquer meios aéreos sobre as nossas cabeças." Apesar da promessa de que os mercenários concluirão a tarefa que lhes foi incumbida - “quando acabarmos o que começámos, regressaremos à linha da frente para proteger a nossa nação”, Yevgeny Prigozhin terminou a sua mensagem com uma ameaça: "A justiça no Exército será restaurada. E, depois, a justiça para toda a Rússia.”

Foi no momento em que se tornou evidente que o Exército russo não ia conseguir nem capturar Kiev com a brevidade pretendida, nem fixar-se e combater no restante território ucraniano, que o Kremlin resolveu recorrer ao grupo paramilitar. Mas Putin esperava juntar mais um aliado externo à sua causa e que reforçasse a posição do Estado, em vez de a questionar. Os desabafos, críticas e ataques de Prigozhin mantêm-se, há vários meses, direcionados sobretudo contra o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e a falta de organização das Forças Armadas russas, e o percurso de Prigozhin à frente das forças paramilitares na Ucrânia tem-se feito de ziguezagues. Em maio, o líder do Grupo Wagner afirmou que a organização paramilitar começou a bater em retirada da cidade de Bakhmut, e que entregaria todas as suas posições ao Exército regular russo até 1 de junho - uma ameaça que, de resto, repetiu até à exaustão.

Nos seus monólogos em vídeo e entrevistas cheias de dramatismo, Prigozhin vem apresentando uma retórica cada vez mais antissistema. Num dos seus discursos mais recentes, criticou a corrupção de todo o regime, a decadência dos oligarcas e dos seus filhos “preguiçosos” que “sugam” o sangue do povo, face ao sofrimento das “pessoas comuns” que "veem os filhos serem-lhes devolvidos em caixões de zinco, aos pedaços".

Numa entrevista a um bloguer pró-guerra, Prigozhin admitiu que a Rússia estava a perder a guerra e que tal realidade poderia ser evitada se a elite rica da Rússia se comprometesse mais plenamente com a guerra. Chegou mesmo a destacar a filha de Sergei Shoigu, que recentemente foi apanhada de férias no Dubai. Convocou o Kremlin a impor a lei marcial e novas ondas de mobilização, após constatar que Bakhmut se tinha transformado num "moedor de carne", de tal ordem era o número de baixas russas na região. “E não devemos pensar que são centenas, agora são dezenas de milhares de familiares dos mortos”, disse esta semana. "E serão certamente centenas de milhares", acrescentou. Esta dualidade, entre os filhos do povo que morrem na guerra e os herdeiros dos oligarcas e outros elementos da elite russa, "pode acabar como em 1917, numa revolução", advertiu Prigozhin, referindo-se ao conflito de que resultou o fim da monarquia e a tomada do poder pelos bolcheviques liderados por Vladimir Lenine. Já nessa altura Prigozhin fazia ameaças veladas aos líderes de Moscovo.

Ainda este mês, Prigozhin recusou-se a assinar contrato com o Ministério da Defesa russo, após o Presidente, Vladimir Putin, insistir nessa necessidade para dar cobertura legal aos benefícios sociais dos combatentes na Ucrânia. “Quando a pátria estava com problemas, quando era necessária a ajuda do Wagner e fomos todos defendê-la, o Presidente prometeu-nos todas as garantias sociais”, escreveu Yevgueni Prigozhin, no seu canal da plataforma digital Telegram. “Tenho 20.000 mortos. Eles deveriam também assinar um contrato com o Ministério da Defesa?”