Guerra na Ucrânia

O que dizem os documentos do Pentágono que andam a circular na internet? Ucrânia já modificou estratégia por causa desta fuga

Enquanto Kiev diz estar a redesenhar a sua estratégia militar por culpa das informações secretas que revelam planos dos Estados Unidos e da NATO para a Ucrânia, os analistas militares russos avisam que esta fuga pode ser uma manobra do Ocidente para baralhar os comandantes do Kremlin. O FBI já está a investigar, mas ainda não se sabe quem pôs a circular todo este material secreto, algum classificado mesmo como “ultrassecreto”

Ukrainian Ppresidential Ppress SER/Reuters

A Ucrânia já alterou parte da sua estratégia militar no seguimento da divulgação de alguns documentos com origem no Pentágono, que apareceram na internet recentemente, e que parecem mostrar as prioridades dos Estados Unidos e da NATO em várias áreas, incluindo na defesa da Ucrânia.

Fonte próxima do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse à CNN que esta divulgação, ainda sem origem conhecida, está a ser levada a sério em Kiev e por isso mesmo há planos para redesenhar o que foi previamente traçado e discutido com os parceiros ocidentais.

A autenticidade dos documentos ainda não está confirmada, mas “parecem reais”, disse uma fonte próxima da investigação à CNN. O FBI já está a tentar entender como é que as páginas com informação secreta, alguma classificada como ultrassecreta pelos serviços de informações da Defesa norte-americana, foram parar à internet, nas últimas semanas.

O Presidente da Ucrânia dirigindo-se ao Congresso dos Estados Unidos
J. Scott Applewhite/Getty Images

Os Estados Unidos não estão a desvalorizar o caso, até porque não existem provas de que a maioria da informação tenha sido fabricada ou adulterada em programas de edição de imagem e texto, apesar de essa ser uma das linhas de investigação que o FBI está a explorar, escreve o “New York Times”. Uma parte pode ter sido alvo dessas técnicas de edição, mas a maioria não.

Algumas das páginas que estão agora a circular têm a inscrição “só pode ser visto por oficiais norte-americanos” o que leva a crer que a informação tenha sido colocada a circular por alguém próximo do Pentágono. A tese de que tenha sido obra de um grupo de hackers parece estar afastada. A informação está disponível na internet há mais de um mês, no site dedicado à discussão do jogo “Minecraft”, o “Discord”, mas ninguém foi alertado para tal, até que, esta semana, algumas fotografias apareceram na plataforma “4chan”, um fórum da internet popular entre extremistas.

“O Departamento de Defesa continua a rever e a avaliar a validade dos documentos fotografados que estão a circular e que parecem conter material sensível e altamente secreto”, disse, este domingo, a vice-secretária de imprensa do Pentágono, Sabrina Singh, acrescentado que há um esforço “interagências” a ser feito, para melhor avaliar o impacto que esses documentos “podem ter na segurança nacional dos EUA" e na de aliados e parceiros dos norte-americanos.

O espectro da informação divulgada é amplo. Vai desde a revelação de detalhes sobre as operações, em África, do Grupo Wagner, os mercenários russos que são uma grande parte da força militar que neste momento combate pelo Kremlin na Ucrânia; passa pelas discussões e planos de Israel para fornecer ajuda militar à Ucrânia e pelas alegadas ligações dos Emirados Árabes Unidos à Rússia, e chega ainda mais longe, à Coreia do Sul que terá dúvidas sobre se deve ou não enviar munições para Kiev.

Além destas informações, há ainda as muitas páginas sobre a Ucrânia, o foco atual da atenção da NATO. Os documentos revelam falhas e fraquezas no arsenal militar ucraniano, nas suas defesas antiaéreas, no número de homens disponíveis para fortalecer os batalhões e, no geral, na preparação de Kiev para uma guerra longa, isto num momento crucial da guerra, quando se fala de uma grande contraofensiva de primavera contra as posições russas. Os documentos não parecem conter planos de batalha específicos, mas detalham os planos secretos americanos para fortalecer as forças armadas ucranianas antes dessa antecipada reviravolta.

Sem um fornecimento em massa de mais munições, mostram os documentos, o sistema de defesa aérea que manteve o poderio da força aérea russa sob controle neste primeiro ano de guerra pode entrar em colapso, uma informação que pode ser útil ao Kremlin, à espera do melhor momento para lançar os seus caças e mudar o curso da guerra.

Ainda segundo a CNN, a administração de Zelensky está “incomodada” com estas falhas de segurança, até porque nelas fica claro que os Estados Unidos têm espiado cada passo de Zelensky. Ao mesmo tempo, estas revelações mostram bem que os espiões norte-americanos têm um acesso quase total a tudo o que se diz nos corredores do Ministério da Defesa da Rússia. As fileiras militares russas estão tão permeáveis, a julgar por estes documentos, que os Estados Unidos têm conseguido obter, quase em tempo real e diariamente, informações sobre os ataques que Moscovo está a planear - incluindo com localização do alvo e hora prevista.

Como escreve o “New York Times”, o problema é que “tudo isto pode agora mudar”. Ou seja, a Rússia pode apertar os controlos de informação. Além disso, a relação de confiança que existia entre a Ucrânia e os Estados Unidos, e entre estes e os seus aliados europeus, pode estar agora um pouco mais enfraquecida.

Um dos principais conselheiros de Zelensky, Mykhailo Podolyak, disse na sexta-feira no Telegram que não acredita que os documentos divulgados sejam autênticos, atribuindo esta fuga de informação confidencial aos russos, que estariam, segundo Podolyak, a jogar mais uma cartada de desinformação em cima da mesa. “Não há a menor dúvida de que este é mais um elemento da guerra híbrida”, disse, citado pelo “New York Times”. “A Rússia está tentar influenciar a sociedade ucraniana, semeando medo, pânico, desconfiança e dúvida. É um comportamento típico”.

Secundando o conselheiro de Zelensky, o representante do Ministério da Defesa ucraniano, Andrii Yusov, acusou a Rússia de alterar os documentos. “Nas últimas décadas, as operações secretas mais bem-sucedidas da Rússia foram realizadas no Photoshop”, disse Yusov, em entrevista à televisão nacional ucraniana, citado pela CNN.

Do lado da Rússia, uma leitura de blogues pró-Kremlin oferece outra perspetiva. Uma publicação no “Gray Zone”, canal do Telegram associado ao Grupo Wagner, a desconfiança é a mesma expressa por Podolyak, mas do outro lado. “Não devemos excluir a alta probabilidade de que tal fuga de informação, no momento exato em que se espera um intensificar das hostilidades, seja uma tentativa de desinformação por parte do Ocidente, com o fim de enganar os nossos militares e dificultar a identificação da estratégia do inimigo na próxima contraofensiva”.

A equipa que reúne os membros mais experientes e com níveis de acesso mais abrangentes do departamento de Defesa norte-americano, e que aconselham o Presidente, está a examinar as suas listas de distribuição para ver quem recebe estes relatórios, disse um funcionário do Pentágono à CNN.