Guerra na Ucrânia

Vladimir Putin anuncia reforço da "tríade nuclear" russa: será uma ameaça real ou apenas uma jogada de propaganda?

As ameaças de Putin no sentido de demonstrar o poder do armamento nuclear russo poderão ser apenas mais um capítulo na sua "narrativa habitual", sugere ao Expresso o major-general Isidro Pereira. Muitos dos mísseis hipersónicos mencionados pelo Presidente russo, embora temíveis em teoria, estão ainda "numa fase experimental", e os restantes empregam tecnologia há muito conhecida, pelo que o seu impacto no teatro de guerra da Ucrânia é incerto

Vladimir Putin
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Esta quinta-feira, em declarações em vídeo por ocasião do Dia do Defensor da Pátria, Vladimir Putin, Presidente da Rússia, prometeu que o Kremlin irá fornecer todo o apoio necessário ao exército russo na Ucrânia e reforçar a “tríade nuclear” do país, uma estratégia militar que envolve armamento capaz de ser lançado por terra, ar e mar.

Pelo mar, a “produção em massa de mísseis hipersónicos Tsirkon”, lançados através de plataformas colocadas em fragatas e submarinos, está num bom caminho, referiu Putin. Pelo ar, a indústria russa “continuará a produção em série dos sistemas de mísseis hipersónicos Kinzhal”, acrescentou.

Já por terra, o Presidente russo ameaçou os seus opositores com um míssil capaz de “provocar o fracasso de todos os sistemas antiaéreos”: o míssil balístico intercontinental Sarmat, também conhecido por “Satan II” [satanás], que, apontou, entrará ao serviço este ano.

A questão coloca-se: o que são exatamente os mísseis Tsirkon, Kinzhal e Sarmat, e de que forma irão alterar o equilíbrio militar no teatro de guerra da Ucrânia?

Ao responder à segunda parte da pergunta, o major-general Isidro Pereira, ouvido pelo Expresso, notou que as declarações de Putin “destinam-se fundamentalmente a desmotivar as populações ocidentais”, notando que algum do armamento mencionado já existe há bastante tempo e não motivará alterações substanciais nos planos militares da Ucrânia ou da NATO, sendo que o restante está apenas “numa fase experimental”.

É o caso do míssil balístico intercontinental Sarmat, projetado para transportar até 15 ogivas nucleares e atingir alvos com um alcance de até 18 mil quilómetros, mas que, no melhor dos cenários, estará apenas em operação em 2025, disse Pereira. De facto, um oficial do Governo norte-americano deu conta na passada quarta-feira de que a Rússia efetuou um teste balístico do Satan II no dia 18 de fevereiro, e que este terá falhado a todos os níveis.

Com mais de 200 toneladas e movido a combustível liquefeito, o Sarmat tem no seu alcance o principal trunfo. Em teoria, poderá atingir solo norte-americano através da rota do Polo Sul, podendo, desta forma, escapar à deteção de alguns dos sistemas de defesa antiaéreos dos EUA, mais vocacionados para a defesa contra de mísseis que se desloquem no hemisfério norte. Esta, porém, é apenas uma “vantagem relativa”, já que a tecnologia antiaérea norte-americana irá também evoluir no sentido de travar essa possibilidade, disse o major-general.

O Sarmat é ainda apresentando como tendo força suficiente para lançar várias ogivas dispostas no veículo e promovido como uma plataforma terrestre de lançamento de mísseis de cruzeiro, mas, devido às suas características, será dificilmente utilizado na Ucrânia.

Já os mísseis hipersónicos de cruzeiro Kinzhal, lançados pelo ar através de caças, têm um alcance bastante inferior e não representam uma novidade em termos tecnológicos face às capacidades mliltares de muitos países a nível mundial. Os mísseis hipersónicos, que devem o seu nome ao facto de se poderem deslocar a velocidades superiores a cinco vezes a velocidade do som (Mach 5 - cerca de seis mil quilómetros por hora), são estudados e testados há muito tempo e conseguem “navegar numa rota relativamente baixa em termos de altitude”, aproveitando "as configurações do terreno - como montes, vales ou colinas - para se tornarem invisíveis aos radares", descreve o major-general.

Um caça russo MiG-31k armado com um míssil hipersónico de cruzeiro Kinzhal, em 2018
Anadolu Agency

Em específico, o Kinzhal, que pode transportar ogivas nucleares, entrou ao serviço das tropas russas em 2017 e foi utilizado pela primeira vez em março de 2022, na Ucrânia, num ataque a uma base militar que estaria a ser utilizada para armazenar armas e munições. É desenhado para viajar nas camadas mais baixas da atmosfera e, segundo a Rússia, poderá alcançar uma velocidade superior a 12 vezes a velocidade do som (Mach 12). Isidro Pereira classifica esta última afirmação como “uma fantasia”, já que “não há material na terra, neste momento, que resista ao atrito nas camadas mais baixas da atmosfera a uma velocidade dessa natureza”.

Se não utilizarem ogivas nucleares, os mísseis Kinzhal, embora poderosos, não alterarão substancialmente o panorama na frente de batalha da Ucrânia. Aquando do seu primeiro lançamento, o Presidente dos EUA, Joe Biden, sintetizou a postura ocidental perante essa possibilidade: "É uma arma consequente, mas com a mesma ogiva que qualquer outro míssil lançado. Não faz muita diferença, exceto que é quase impossível detê-la. Há uma razão para o estarem a usar".

Finalmente, a última peça na equação da "tríade nuclear" russa passa pelo mar, mais especificamente pelos submarinos nucleares, que podem ser complementados com os mísseis hipersónicos Tsirkon. A marinha russa garante que os Tsirkon, destinados sobretudo para ataques a navios de guerra, conseguem deslocar-se a uma velocidade de sete mil quilómetros por hora, tornando-os “invencíveis” segundo a ótica do Kremlin.

Mas há razões para desconfiar das capacidades deste equipamento militar. Tal como refere Sidharth Kaushal, um especialista britânico em guerra naval do think tank Royal United Services Institute, existem inconsistências fundamentais no seu desenho. Os objetos que viajam a estas velocidades ionizam o ar à sua volta, criando uma camada de plasma em seu redor que bloqueia os sinais de radar, sendo que é precisamente através destes sinais que o míssil irá encontrar o seu alvo, disse Kaushal, citado pelo site Insider.

Por isso, mesmo que já estejam operacionalizados na fragata russa Almirante Gorshkov desde janeiro deste ano, Kaushal julga que "a operacionalização do Zircon é um desenvolvimento importante, mas cuja importância não deve ser sobrevalorizada".

Quanto à ameaça de utilizar, de facto, armas nucleares, que o Presidente russo não se cansa de evocar, Isidro Pereira é perentório: "Isto é para assustar as populações fundamentalmente europeias, porque as pessoas têm sempre medo: 'O Putin é mesmo louco, e se ele carrega no botão?' As coisas não são assim, para ativar as armas nucleares estratégicas intervêm pelo menos seis pessoas".

Mesmo que o Presidente russo dê a ordem, continua Pereira, "tenho a certeza que alguém recusará obedecer. Os generais são militares de carreira e sabem perfeitamente quais são as consequências de serem eles os primeiros a iniciarem um ataque nuclear - se decidirem utilizar uma arma nuclear, têm por certo que vão morrer, isso é garantido".

Texto de José Neves, editado por João Cândido da Silva