A memória de 1945 não se esvaneceu, nem a dos julgamentos de Nuremberga, que levaram às barras dos tribunais os comandos militares da Alemanha nazi. Seguros de que se aproxima o momento de julgar os atos de agressão russos na Ucrânia, países como a Alemanha, França e o Reino Unido fazem uso da memória de um passado comum para apelar à constituição de um tribunal especial que não deixe escapar ilesos Vladimir Putin e a sua “corte”.
Philippe Sands, um advogado britânico que, a par do primeiro-ministro trabalhista Gordon Brown e do Governo ucraniano, conduz a campanha pela fixação de um tribunal especializado, admitiu ao Expresso que os EUA “estão a considerar cuidadosamente o assunto, como realmente deveriam, depois de o Reino Unido ter embarcado na causa, na semana passada". Mas por que não pode o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, atuar neste caso, e o que justifica a necessidade de fixação de uma nova entidade judicial? A jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI) limita-se aos crimes de agressão de Estados que integram o Estatuto de Roma. Embora o tribunal possa investigar atos de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a Humanidade na Ucrânia, como a Rússia não ratificou o Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional não tem como penalizar os crimes perpetrados por Moscovo.
“Atualmente, nem a Rússia nem a Ucrânia integram o Estatuto; a Ucrânia aceitou a jurisdição do Tribunal para alguns crimes, mas não para agressão, e o Conselho de Segurança também não autorizou o Tribunal a exercer jurisdição sem tal consentimento, sendo improvável que venha a fazê-lo dado o direito russo de veto”, defende Yuval Shandy, professor de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade Hebraica, em Israel. Existe, contudo, a possibilidade de emendar o Estatuto do TPI, mas seria “um processo demorado e difícil, e haveria sérias dificuldades legais em aplicar tal emenda a acontecimentos já ocorridos”, explica ao Expresso o investigador de Jerusalém.
Uma forma de contornar a ausência de qualificação do fórum para julgar os altos responsáveis russos seria o Conselho de Segurança da ONU encaminhar a situação ao TPI. No entanto, a tentativa pode - e deverá - ser automaticamente bloqueada pela Rússia, membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, com direito de veto.
Phillipe Sands acredita que o mais provável é surgir um “tribunal híbrido”, que recorra à lei nacional ucraniana sobre crimes de agressão e a "misture" com a lei internacional, criando um “tribunal internacionalizado, que deverá estabelecer um escritório interino em Haia, para iniciar a investigação”. O juiz sul-africano Richard Goldstone, com vasta experiência com crimes de guerra, contextualiza que “tal tribunal especial poderia ser autorizado a processar os líderes russos à revelia”, já que a lei da Ucrânia prevê julgamentos nessa modalidade. “E um julgamento assim permitiria que as provas relevantes fossem apresentadas em processos públicos, nomeando e envergonhando os líderes russos. Se Putin for substituído por um líder democrático, poderá enfrentar as consequências de tal julgamento.” É verdade que as autoridades de maior relevo, como Putin, podem reivindicar “imunidade de chefe de Estado”, mas a questão não está absolutamente resolvida sob a lei internacional, “e quanto mais internacionalizado for o tribunal, mais provável é que o pedido de imunidade seja invalidado”, replica o professor de Direito Internacional da Universidade Hebraica.
A criação de um “tribunal de guerra híbrido” seria, então, obra de Kiev, com o apoio de outros Estados e organizações internacionais, talvez até com o apoio da Assembleia Geral, reforça Yuval Shandy. Tais tribunais híbridos tiveram precedentes no Líbano, Kosovo e Camboja. Um tribunal desse tipo pode aplicar a lei ucraniana - que abrange o crime de agressão e guerra - e as definições do direito internacional do crime de invasão.
Annalena Baerbock, ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, alegando ser necessário enviar “uma mensagem muito clara aos líderes russos - e a outros no mundo - de que uma guerra como esta não passará imune”, foi uma das primeiras vozes a manifestar-se a favor da criação de um tribunal especial. Deve ainda ser investigado se os “crimes” de Moscovo constituem genocídio, argumentou a governante. França também já o tinha declarado, remetendo para o Tribunal Penal Internacional e para a Justiça ucraniana a jurisdição necessária para conduzir investigações e responsabilizar os culpados.
Se os Estados Unidos da América têm tardado em tomar uma posição, o Reino Unido resolveu oferecer apoio qualificado para a criação do tribunal especial, tendo em vista a punição de altas patentes militares e políticos por crimes de guerra na Ucrânia. Depois de ter sido convidado por Kiev a juntar-se a um grupo de aliados internacionais em torno da causa, o Reino Unido decidiu apelar ao G7 para que participe. A ideia mereceu o apoio do Parlamento Europeu.
Jennifer Trahan, jurista do Centro de Assuntos Globais da Universidade de Nova Iorque e membro do grupo de trabalho que apoia o tribunal especial para o crime de guerra na ONU, garante que “o que é necessário é um Tribunal Especial para o Crime de Agressão que seja criado através da ONU”. Assim sendo, a “Assembleia Geral poderia recomendar a criação de um tribunal”, que permitiria então que a ONU e a Ucrânia negociassem o estatuto, através de um tratado bilateral. O modelo inspira-se no processo pelo qual o Tribunal Especial da Serra Leoa foi criado [por acordo bilateral entre a ONU e a Serra Leoa], bem como do Camboja.
O projeto ganharia ainda mais força se fosse endossado pelos EUA. Segundo a jurista, Washington deve chegar-se à frente para o promover, já que um tribunal de base internacional “seria preferível a um tribunal regional em que haveria imunidades”. As lideranças responsáveis pelo crime de invasão e guerra poderiam ficar imunes a processos perante um tribunal regional, mas não escapariam perante um tribunal internacional recomendado pela Assembleia Geral. “O veto da Rússia efetivamente bloqueia qualquer ação semelhante do Conselho de Segurança”, lembra Richard Goldstone. No entanto, nada impede que a Assembleia Geral avance para tal medida, precisando, para isso, apenas de uma maioria simples dos seus membros (não havendo poder de veto). “Os Estados Unidos apoiam a investigação do crime de agressão contra os líderes da Federação Russa e devem, portanto, promover um tribunal especial estabelecido pela ONU e pela Ucrânia. Não há outra forma de processar Putin e os seus associados por esse crime de agressão.”
A fixação de um tribunal especial impediria que a Federação Russa sentisse que tem “livre passe para iniciar guerras, causar baixas e grandes danos”, advoga a jurista Jennifer Trahan. “É por isso que é imperativa a necessidade de a ONU criar um Tribunal Especial para o Crime de Agressão.” Trata-se de uma medida “completamente viável”, que apenas exige o alinhamento de votos suficientes na Assembleia Geral, mas de que poderá depender a “estabilidade geopolítica”, vinca a analista de Nova Iorque. “Se não houver resposta para este crime, que invasão massiva virá a seguir? Sair-nos-á muito caro não punir este crime.”
O Tribunal Especial para o Crime de Agressão poderia processar o crime de agressão - isto é, o crime que iniciou todos os outros (crimes de guerra, crimes contra a Humanidade e genocídio) - e investigar e responsabilizar a liderança política e militar russa, bem como a da Bielorrússia, que permitiu que o seu território fosse usado como trampolim para a invasão.
Mas será uma abordagem ‘ad hoc’ a ideal?
Jennifer Trahan considera que a formação de um tribunal especial seria “uma declaração poderosa de que um país não pode invadir o seu vizinho e contar com impunidade maciça”, mas admite que uma resolução ad hoc não é ideal. “Os esforços para criar um Tribunal Especial para o Crime de Agressão devem ser combinados com o empenho para alterar o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, aumentando a jurisdição que o TPI tem sobre o crime de agressão, para que ocorrências futuras possam ser processadas.”
Os tribunais jugoslavo e de Ruanda, por exemplo, constituíram abordagens ‘ad hoc’, mas o objetivo do Tribunal Penal Internacional era, em última análise, evitar instituições de atuação tão específica. No entanto, o TPI não tem jurisdição universal. Há lacunas, e onde há lacunas há impunidade. “A criação do tribunal especial permitiria que não houvesse impunidade para o crime supremo de iniciar a guerra”, aponta Jennifer Trahan.
Para Phillipe Sands, a criação de um tribunal transmite sinais importantes: em primeiro lugar, o de que não haverá impunidade para “os homens e mulheres que se sentam à mesa à volta de Putin e para os líderes que decidiram travar esta guerra manifestamente ilegal”. Em segundo lugar, a medida provaria que o precedente de 1945 - quando o crime de agressão surgiu - será salvaguardado, e não esquecido. Yuval Shany lembra que os julgamentos de Nuremberga referiam a precipitação de uma guerra como “o crime dos crimes”, o abismo para o qual se olha à procura das mais infames infrações contra os povos.
Já Richard Goldstone prefere - porque também é importante - olhar para o futuro: “Esse tribunal especial enviaria um sinal à comunidade global de que o crime de agressão é um dos mais graves e uma clara violação da lei e do espírito da Carta das Nações Unidas. Seria também um alerta para outros Estados que possam tentar cometer futuros atos semelhantes.”