“A Rússia ficará aqui para sempre. Não deve haver dúvidas sobre isso.” A garantia foi dada por um aliado de Putin em maio, durante uma visita a Kherson. A cidade no sul da Ucrânia foi tomada a 2 de março, praticamente uma semana depois do início da guerra: foi a primeira a cair, e durante várias semanas foi a única urbe de grande dimensão nas mãos dos russos.
Não se sabe ao certo porque é que Kherson caiu tão facilmente, mas sabe-se isto: quando os invasores chegaram, encontraram sobretudo civis assustados. Alguns dias antes, militares ucranianos e agentes dos serviços de informações desapareceram sem deixar rasto.
“Não tenho tempo para lidar com todos os traidores, mas gradualmente todos eles vão ser castigados”, disse Volodomyr Zelensky no início de abril, ao mesmo tempo que anunciava o despedimento do director dos serviços de informações da região, suspeito de colaborar com as forças russas.
O possível falhanço das autoridades ucranianas não abalou a resistência dos habitantes de Kherson: no segundo dia da ocupação russa, cerca de 15 pessoas juntaram-se na praça principal da cidade em protesto contra a presença das tropas invasoras. No dia seguinte, os manifestantes eram cerca de 2000: os protestos continuaram nos dias seguintes e a violência russa para os conter cresceu, ao mesmo tempo que o exército de Moscovo criava postos de controlo e detia pessoas consideradas suspeitas. Segundo uma reportagem da “The Economist”, vários dos cidadãos interrogados continuam desaparecidos.
A 26 de abril, o autarca foi afastado do cargo por “não cooperar" com os invasores e substituído por um ex-agente do KGB soviético. O dia a dia da cidade mudou bastante desde então: no início de maio, o rublo russo foi oficialmente introduzido na cidade e os pensionistas começaram logo a receber as suas reformas na moeda russa.
Ao mesmo tempo, as forças armadas russas bloquearam a transmissão de canais de televisão ucranianos, incentivando a população a obter informação através de rádios ligadas a Moscovo. Além disso, capturaram uma boa parte da infraestrutura de internet no sul da Ucrânia. Um cabo de fibra óptica em Kherson foi desligado e a cidade passou a estar ligada à internet através de um operador da Crimeia – deixando-a à mercê da censura e da propaganda do Kremlin. “O inimigo considera que a sua missão é eliminar o acesso dos ucranianos à sua própria internet, e têm a experiência de 2014 para saber como fazê-lo”, sublinhou Yurii Shchyhol, chefe do serviço de comunicações especiais da Ucrânia.
Esta aposta russa nas comunicações foi além de Kherson: Moscovo trouxe novos fornecedores de internet para algumas zonas do Donbas onde as batalhas continuam a decorrer, como Novokrasnovka, Starchenkovo, Khlebodarovka, e Berdyansk.
Resistência popular e contra-ataques militares: as armas da Ucrânia
A nível político e institucional, também estão a ser dados passos em direção à oficialização da ocupação russa. Os serviços de informações britânicos garantiram que o objetivo do Kremlin é ligar por terra Kherson à Crimeia, a península anexada à força pela Rússia em 2014. Leonid Slutsky, diretor do Comité internacional do parlamento russo, disse esta quarta-feira que a Rússia poderá anexar Kherson e as autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Luhansk (incluindo Mariupol) durante o mês de julho.
A possibilidade de um referendo está em cima da mesa: Zelensky já avisou para esse perigo em abril e os russos já utilizaram esse método para legitimar a anexação da Crimeia. A 25 de maio, Putin assinou um decreto para acelerar a emissão de passaportes em territórios ucranianos ocupados. “A Crimeia vai ajudar a emitir passaportes russos aos habitantes das regiões de Kherson e Zaporizhia. A experiência de reunificação da Crimeia com a Rússia vai ser tida em consideração [nesse processo]”, acrescentou poucos dias depois a agência estatal TASS, citando as autoridades da península anexada.
As autoridades ucranianas disseram na semana passada que a Rússia também já começou a distribuir passaportes aos habitantes de Mariupol. Moscovo não confirmou nem negou esta informação.
No entanto, há dúvidas de que as intenções políticas de Moscovo sejam compatíveis com a realidade atual. Primeiro, porque a resistência nos territórios ocupados persiste: “As autoridades russas continuam a ter dificuldades em estabelecer um controlo social permanente nos territórios ucranianos ocupados”, escreve o Institute for the Studying of War (ISW) no seu relatório sobre a guerra desta quinta-feira.
As administrações russas “estão apenas criadas no papel”, garante o Centro de Resistência Ucraniano: são incapazes de controlar as populações, forçar o uso da moeda russa, ou dar seguimento à burocracia estatal. A juntar isso, os sabotadores ucranianos estão cada vez mais ativos.
Depois, a situação russa no campo de batalha está longe de ser confortável. O "Moscow Calling", um canal de Telegram russo opositor ao regime, ridicularizou o objetivo de anexar Kherson e o Donbas até julho, lembrando que as forças russas ainda não conseguiram controlar um corredor terrestre entre Kherson e a Crimeia através de Zaporizhia, uma cidade essencial para apoiar rotas comerciais e administrativas desejadas pelos russos.
Mas Zaporizhia e Kherson não estão controladas. Nos últimos dias, as forças armadas da Ucrânia têm contra-atacado as posições inimigas, ameaçando as linhas de comunicação e logística das tropas russas. Moscovo tem destruído várias pontes na região para impedir o avanço ucraniano e até anunciou a "nacionalização" da central nuclear de Zaporizhia, mas está a perder terreno e a recuar para leste do rio Inhulets, que passa entre as duas regiões.
Até adeptos de Putin estão preocupados. O canal de telegram “Dmitriyev”, favorável ao Kremlin e com mais de 100 mil seguidores, garantiu que as forças ucranianas serão capazes de infligir “golpes dolorosos” à logística russa nas duas regiões.
A razão é simples: a operação bélica da Rússia está virada para a conquista do Donbas, o que enfraquece a defesa das zonas já conquistadas. “Os bloggers russos estão efetivamente a criticar o comando militar do país por dar tanta prioridade à operação ofensiva no Donbas, colocando em risco os avanços conseguidos noutros eixos da guerra [como em Kherson]", escreveu o ISW esta quarta-feira.
A guerra já dura há 100 dias, mas ainda é cedo para saber o que vai acontecer aos territórios da Ucrânia que estão sob o controlo de Moscovo. Se as (in)decisões russas e os contra-ataques ucranianos continuarem, qualquer anexação de facto afigura-se difícil: “O Kremlin continua a levar a cabo medidas de ocupação inconsistentes no sul da Ucrânia, indicando uma resistência ucraniana em grande escala e provavelmente uma indecisão russa sobre como integrar o território ocupado”, conclui o relatório do ISW.