Guerra na Ucrânia

Ucrânia: especialistas falam em crimes de guerra e contra a Humanidade, mas genocídio não é consensual

As atrocidades cometidas pelas forças russas na Ucrânia provocaram acusações generalizadas de crimes de guerra, crimes contra a Humanidade e genocídio. Os especialistas não têm dúvidas de que as altas patentes militares de Moscovo foram longe demais, mas há argumentos a favor e contra definir a ação russa como genocídio

Famílias enterram civis que morreram em Bucha
Anadolu Agency

"É um verdadeiro genocídio o que se vê aqui." Esta frase, dita por Volodymyr Zelensky, em Bucha, gerou comoção em todo o mundo. Centenas de corpos e valas comuns tinham sido encontradas dias antes, e, desde então, a comunidade internacional continua a ser confrontada com aquilo que vários líderes mundiais caracterizam como "atrocidades" cometidas pelas forças russas.

Mateusz Morawiecki, primeiro-ministro da Polónia, não hesitou em considerar os assassinatos em Bucha e outras cidades perto da capital, Kiev, "atos de genocídio que devem ser tratados como tal". O primeiro-ministro britânico foi mais contido, mas não evitou a palavra. Os ataques contra civis em Bucha não "parecem estar muito aquém do genocídio", admitiu Boris Johnson.

Joe Biden também apontou o dedo às tropas russas, acusando Vladimir Putin de estar a tentar "eliminar a ideia" da identidade ucraniana. Já a Amnistia Internacional redigiu um relatório que incide no que diz serem crimes de guerra, nomeadamente os bombardeamentos totalmente ilegais" contra civis em Borodyanka e execuções sumárias nas cidades de Bucha, Andriivka, Zdyzhivka e Vorzel.

No entanto, muitos países manifestaram relutância em recorrer algumas palavras para descrever o que está acontecer na Ucrânia. Emmanuel Macron recusou falar em "genocídio" e chegou a alertar contra uma "escalada de retórica". Mas haverá base jurídica para acusar as forças de Moscovo de cometer "o crime de todos os crimes"?

Os assassinatos direcionados em Bucha e outras cidades ucranianas são claramente crimes de guerra, e quase certamente crimes contra a Humanidade.

O que é genocídio?

Amplamente definido como o mais grave crime contra a Humanidade, o genocídio é, em teoria, o extermínio em massa de um determinado grupo - nacional, étnico, racial ou religioso - de pessoas, como o assassinato de seis milhões de judeus no Holocausto da Segunda Guerra Mundial.

Matar membros do grupo, causar danos físicos ou mentais graves aos seus membros, infligir de forma deliberada condições de vida que provoquem a destruição física total ou parcial do grupo, impor medidas para prevenir nascimentos nessa comunidade e transferir forçosamente crianças desse grupo para outro constituem práticas desse tipo, de acordo com a Convenção sobre Genocídio da ONU.

Apesar de várias denúncias sugerirem que algumas ações russas coincidem com os critérios para um genocídio, o enquadramento não é consensual.

O que dizem os especialistas?

Jonathan Leader Maynard, analista de política internacional do King's College London, diz ser ainda cedo para falar em genocídio. "Os assassinatos direcionados em Bucha e outras cidades ucranianas são claramente crimes de guerra, e quase certamente também crimes contra a Humanidade", admite o especialista, questionado pelo Expresso.

Há muitas razões pelas quais terríveis atrocidades são cometidas que vão além da intenção genocida.

De acordo com as Convenções de Genebra, constituem crimes de guerra o uso de material explosivo que cause sofrimento desnecessário às vítimas, a não identificação de mortos e feridos, e posterior comunicação às famílias. Nas áreas de batalha, devem existir zonas demarcadas para onde os doentes e feridos possam ser transferidos e tratados. Também deve ser garantida proteção especial contra ataques a hospitais civis, assim como devem ser asseguradas a passagem livre de medicamentos e a alimentação da população no país em conflito. Jonathan Leader Maynard também aponta que estão a ser cometidos crimes contra a Humanidade dados os casos de sequestros, deportações forçadas, violações e ataques deliberados contra locais onde permanecem civis.

O genocídio é mais difícil de provar, especialmente enquanto um conflito está ainda em curso, sublinha o analista de política internacional. "Há muitas razões pelas quais terríveis atrocidades são cometidas que vão além da intenção genocida, e, a menos que possamos ter a certeza de que é essa a motivação para as atrocidades, então não podemos enquadrar com certeza essas atrocidades nos critérios exigidos pela Convenção do Genocídio."

Jonathan Leader Maynard dedica-se a estudar o papel da ideologia na violência política coletiva, especialmente nas formas de violência contra civis, como genocídios, atrocidades em massa e terrorismo, e diz que há duas formas de estabelecer se um genocídio está a ocorrer: "Precisaríamos de uma evidência clara de ordens emitidas aos perpetradores de atrocidades 'no terreno' [soldados/unidades militares] que expressassem intenção genocida, ou possivelmente declarações dos próprios perpetradores expressando intenção genocida, ou então de um padrão de violência que indique claramente intenção genocida."

"Alguns dos piores crimes da História não foram de natureza genocida"

O especialista de política internacional do King's College London compreende, por isso, que os líderes mundiais hesitem na categorização. "Sabemos que atrocidades terríveis estão a acontecer, mas não é claro se essas atrocidades são do tipo genocida. Enfatizo sempre que isso não significa que as atrocidades não são tão más quanto o genocídio; atrocidades são atrocidades sejam elas genocidas ou não, e alguns dos piores crimes da História humana não foram de natureza genocida."

SERGEI SUPINSKY

A destruição indiscriminada de casas e hospitais albergando civis não deixam margem para dúvidas. Estas "atrocidades" são, de forma mais óbvia, definida como crimes contra a Humanidade, já que têm a gravidade de "assassinatos, escravatura, violações e extermínio conduzidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático dirigido contra qualquer população civil", segundo o Estatuto de Roma de 1998 do Tribunal Penal Internacional.

Alex Hinton, diretor do Centro para o Estudo do Genocídio e Direitos Humanos da Universidade Rutgers, reconhece que a definição legal de genocídio exige prova de intenção de destruir grupos raciais, étnicos, religiosos ou internacionais, mas acredita que o conflito evoluiu no sentido de um genocídio do povo ucraniano. "Provar a intenção é notoriamente difícil. Pode ser inferido a partir de declarações feitas por líderes, padrões de violência no terreno e ordens dadas na cadeia de comando. Putin e outros perto dele caracterizaram o conflito em termos genocidas. Vemos ataques generalizados a civis em lugares como Bucha..."

O nível de ameaça para crimes de genocídio e atrocidades, demonização ideológica dos ucranianos e a revolta que tem sido alimentada também são bastante notórios.

Sem dúvidas de que a Rússia cometeu crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, o investigador vai ainda mais longe, apontando que os militares russos também podem ter cometido atos de genocídio, incluindo assassinatos, violações e deportações de crianças "para diminuir o grupo nacional ucraniano e apagar a sua identidade.

"O nível de ameaça para crimes de genocídio e atrocidades, demonização ideológica dos ucranianos e a revolta que tem sido alimentada também são bastante notórios", diz Alex Hinton ao Expresso.

Mas "faz sentido" que Macron seja cauteloso. Alex Hinton lembra que é importante manter relações diplomáticas, ainda que em contexto altamente beligerante. "Macron tem um relacionamento com Putin e está em condições de ajudar a procurar uma solução diplomática para a crise. Para manter essa posição, Macron evita usar o rótulo de genocídio ou menosprezar Putin; desvia a questão do genocídio dizendo que cabe aos juristas fazer uma comprovação. Só que, claro, Macron nunca diz que o genocídio não está a ocorrer."

Falar em genocídio é um ato político com que nem todos os estadistas se querem comprometer. O professor que trabalha para a UNESCO em matérias de prevenção de genocídios defende, contudo, que, "devido ao discurso russo de desnazificação e desucranização, o conflito cheira a genocídio".

"Às vezes, é até usado como pretexto para violência, como é o caso da tentativa retórica da Rússia de justificar a invasão da Ucrânia com a alegação infundada de que a Ucrânia estava a cometer genocídio contra falantes de russo no Donbas. Ironicamente e tragicamente, a Rússia é que acabou por cometer esses crimes e atrocidades."

Future Publishing

Eliminação da identidade ucraniana

"Putin declarou isso abertamente", salienta Alex Hinton. "Até escreveu um longo ensaio argumentando que a identidade ucraniana é imaginária. Tal linguagem - a linguagem do genocídio - também circula nos 'media' estatais russos. Putin, por outras palavras, enquadrou o conflito em termos genocidas."

Jonathan Leader Maynard compreende o argumento, num momento em que as principais elites políticas russas passaram a recorrer cada vez mais a "ideologia genocida ou propaganda genocida". Não só os discursos do Presidente russo, mas também a imprensa estatal russa e outros políticos russos, "têm sugerido cada vez mais que a Ucrânia é um país artificial, produto do nazismo, e que a desnazificação significa desucrainização".

"O que é menos óbvio, nesta fase, é até que ponto essa propaganda ou ideologia é realmente a principal razão para as atrocidades no terreno. Putin gostaria de acabar com a ideia da identidade ucraniana como uma nação independente e significativa. Mas quão central é esse objetivo para a violência que vemos na Ucrânia? As coisas podem tornar-se mais claras à medida que forem surgindo mais provas."