Guerra na Ucrânia

Entrevista. Durão Barroso lembra o que Putin lhe disse: “Podíamos tomar Kiev em menos de duas semanas.” E avisa: “Temos de levar mais a sério as declarações dele”

O ex-presidente da Comissão Europeia admite que os líderes não levaram Putin a sério, mesmo quando ele invadiu a Crimeia em 2014. “O perigo de uma escalada é real”, avisa. Mas acha que Putin não está a pensar bem estrategicamente

“No passado não o levámos a sério, agora, não podemos excluir nada”, diz o ex-presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, em entrevista por videoconferência ao Expresso, a partir de Londres. “Quero acreditar que não” usará o poder nuclear. “Mas o argumento que utilizou para justificar a não existência da Ucrânia, também podia ser utilizado para outros países que fazem parte da UE. Alguns são da UE e da NATO. Por isso, o perigo de uma escalada é real”, afirma o Barroso, que que se reuniu 25 vezes com Vladimir Putin. “Temos de ter disciplina para não gerar uma situação que fuja ao controlo”. A versão integral da entrevista publicada na edição em papel.

Em 2014, depois da invasão da Crimeia, quando ainda presidia à Comissão Europeia, teve uma conversa ao telefone com Vladimir Putin, em que ele lhe disse que “se quisesse tomava Kiev em 15 dias”. O mundo não levou Putin a sério?

Foi uma de várias conversas que tive na altura da crise da Crimeia. Achámos bem manter o diálogo, apesar das enormes divergências que tínhamos. É verdade que, acerca da presença de militares russos – quando ainda pretendia dizer que não havia intervenção militar da Rússia na Crimeia -, o Presidente Putin disse que aquelas não eram forças armadas russas. Eram apenas alguns voluntários russos que estavam perto da Crimeia, quando se deu a crise, e que foram chamados pelos seus irmãos ou amigos do outro lado da fronteira para ajudar. Na altura chamavam-se os “homens verdes”, porque não tinham distintivos das forças armadas, mas faziam parte das forças especiais russas. Para clarificar o seu ponto, Putin acrescentou: “Posso garantir que se fossem as Forças Armadas russas, podíamos tomar Kiev em menos de duas semanas.”  Tentando ser justo e objetivo, não disse que queria tomar Kiev. Pelo menos, não quis assumir essa intenção na altura. Mas quis dizer que podia fazê-lo, se assim entendesse. Quis mostrar que em causa não estava uma intervenção das forças armadas russas, mas de algumas milícias.

Entretanto, essa informação foi divulgada…

Obviamente, achei esta informação importante e partilhei-a informalmente com os meus colegas do Conselho Europeu. Não fui eu que a tornei pública. Mas houve uma fuga no jornal italiano “La Repubblica”, e o Kremlin veio manifestar o seu desagrado, embora não tivesse desmentido o essencial. O que disse é que estava fora do contexto, o que de certa forma é verdade. É interessante ver, todos estes anos depois, é que Putin estava a manifestar um desejo que tinha. Se fizermos uma análise cuidada do que são as declarações dos políticos, mesmo involuntariamente às vezes transmitem aquilo que pensam.

Nessa altura não achava que isto podia acontecer? 

Não. Já estávamos muito preocupados com toda a situação, e isso está documentado. Mas confesso que nem eu nem ninguém na altura, nomeadamente ao nível do Conselho Europeu, pensámos que aquilo que se está a pensar agora pudesse acontecer. Isto ultrapassa toda a imaginação: em pleno século XXI, na Europa, um país que tem as segundas maiores Forças Armadas do mundo, procura destruir ou fazer desaparecer como país independente um país soberano, internacionalmente reconhecido, pelas Nações Unidas, e pela própria Rússia. Que lhe deu garantias, quando foi a desnuclearização da Ucrânia, de preservar a sua integridade territorial e independência. Isto ultrapassa tudo.

O que é que mudou? Putin mudou?

Há quem diga que mudou o próprio homem: mudou Putin ou a situação? Mudaram as duas coisas. O Presidente Putin, que conheci até 2014, foi o líder fora da UE com quem me encontrei mais vezes. O meu gabinete contou 25 vezes. Mas o que mudou foi, sobretudo, a perceção que ele tem das circunstâncias. O Putin que conheci era uma pessoa com um profundo ressentimento contra a decadência russa. Ele próprio disse publicamente que a maior tragédia do século XX foi o colapso da URSS, não por causa do colapso do comunismo, mas por terem ficado muitos russos fora da sua pátria, e não lhes ser reconhecida a cidadania russa. É um homem marcado profundamente pelo ressentimento, mas também é alguém que fazia cálculos racionais no sentido de pesar os custos e os benefícios de cada decisão, e taticamente ver até onde podia ir. Mas não a um ponto de ultrapassar a linha do que seria entendível, de um ponto de vista racional. Hoje, aparece-nos um Putin muito mais emocional: aquela expressão do discurso em que nega praticamente à Ucrânia a ideia de existir, conheci-lhe várias vezes. Mas era uma expressão que tinha numa conversa de quatro ou cinco horas. Agora é uma posição permanente. Muitos analistas acham que o elemento emocional está claramente a ultrapassar o elemento racional.

Há notícias de 2014 com a Ângela Merkel a dizer que Putin se tinha tornado “irracional e imprevisível”, ou que tinha perdido a noção da realidade. Não era essa a sua impressão?

Era a minha perceção que havia os dois elementos: o emocional e o racional. E nós procurámos condicionar Putin pela via racional e não pela via emocional. Mas acho que mudou a perceção que Putin sobre a relação de forças: ele acha que a Rússia está mais forte depois da Síria e que o Ocidente está mais fraco, depois do Afeganistão. Acha também que a Rússia está mais forte do que em 2014, porque modernizou as Forças Armadas, mas também a economia está mais forte, sobretudo pelo preço do petróleo e do gás, o que lhe permitiu acumular um tesouro de guerra, porque tem reservas muito importantes e um superávite da balança de pagamentos considerável. Em boa parte, essas vantagens já foram anuladas por sanções mais fortes do que ele previa. Também um controlo maior sobre a sociedade russa, tendo posto na prisão o seu principal opositor. A noção que ele tem da realidade e da relação de forças não é a mesma, por isso é que decidiu intervir. A Ucrânia não estava a seguir o caminho que ele previa. Ele gostava que a Ucrânia fosse uma espécie de Bielorrússia do sul.

Uma Ucrânia russófila…

Pelas declarações que ele faz, e de facto temos de levar mais a sério as declarações dele, é um mundo russo, criando não apenas uma esfera de influência, reduzindo a soberania ou anexando partes de outros países, como aconteceu com a Crimeia. Por isso, ele não admite que a Ucrânia se tenha vindo a europeizar e ocidentalizar. O que desencadeou a intervenção militar na Crimeia e a anexação não foi a NATO ou qualquer ameaça, até porque na altura isso nem estava praticamente na agenda. Mas houve numa cimeira da NATO, em 2008, uma posição de portas abertas à Ucrânia e à Geórgia, que a meu ver foi um erro. A posição foi muito defendida por George H. Bush, lembro-me que Angela Merkel e Sarkozy não queriam essa política tão aberta porque previam uma reação russa. Por isso o comunicado final foi tão diluído, mas estava lá essa ideia. Mas não há nenhuma perspetiva realista de a Ucrânia entrar na NATO, isso nunca esteve na agenda.

O Ocidente e a NATO podiam ter feito alguma coisa estes sete anos?

Esses juízos hipotéticos retroativos são sempre muito interessantes, mas um bocadinho irrelevantes. Decide-se com as informações que se tem na altura. E também não seria credível nem exequível que, por causa dessa declaração, a Europa e os EUA fossem para posições muito mais duras. É preciso não esquecer que tomámos sanções contra a Rússia, que aliás ainda estavam em vigor, apesar de alguns pedirem para elas serem levantadas.

A ameaça nuclear é para levar a sério?

No passado não o levámos a sério, nem todas as ameaças explícitas ou implícitas. Neste momento não podemos excluir nada. Quero acreditar que não. Mas o argumento que Putin utilizou em relação à Ucrânia para justificar a não existência da Ucrânia, também podia ser utilizado para outros países que faziam parte da UE. Alguns são da UE e da NATO. Por isso, o perigo de uma escalada é real. Isto exige uma grande disciplina também da parte do ocidente. Temos de ter paciência e determinação estratégicas. Temos de ter disciplina para não gerar uma situação que não fuja ao controlo, até com decisões que não tendo essa intenção pode descarrilar.

Ficou surpreendido com a reação europeia? Unida e ter ido tão longe?

Sou muitas vezes acusado de ser muito otimista em relação à UE. Jean Monnet dizia que a comunidade será feita “como resposta sucessivas a crises sucessivas” . Mais uma vez se verificou isso. A UE tomou medidas que muitos achavam impossíveis. Não as julguei impossíveis. Sempre tive confiança que a Alemanha viesse a mudar de posição. A Alemanha é um navio muito grande e demora muito tempo a mudar de rota. Mas quando muda, muda mesmo. As medidas são muito maiores do que a maioria esperava. Não apenas no aspeto económico, mas também o congelamento das reservas do Banco Central Russo, o que só por si torna praticamente sem eficácia o tal grande superávite que a Rússia tem, mas também as medidas militares. Quando a UE, pela primeira vez, anuncia que vai enviar armas para uma zona em conflito, é um tabu que cai, e com enorme significado. Ainda me recordo, quando na Comissão Europeia propus que parte dos 80 mil milhões de euros de fundos para a investigação pudesse ser co-financiamento para a Defesa. Mas uma grande parte do Parlamento Europeu opôs-se com o argumento de que a UE é uma organização apenas civi. É muito bem intencionado, mas algo ingénuo. A UE é feita para os europeus defenderem os seus interesses no respeito pelos seus valores. Se a UE não serve para os europeus defenderem os seus interesses, então serve para quê? Já há algum tempo vinha apelando para que a UE perdesse alguma da sua ingenuidade nas questões da Defesa.

Todo este movimento da Europa, dos EUA, de empresas privadas, é suficiente para asfixiar e isolar o regime? 

A curto prazo não. Acho que Putin não é sensível a estas sanções. Normalmente, as sanções não têm grande efeito. Se tivessem, já Cuba ou a Coreia do Norte ou o Irão teriam mudado há muito tempo e não mudaram. Com a exceção notável da África do Sul, das sanções contra o Apartheid, que tiveram uma grande influência da consciencialização da chamada elite branca. Neste caso, foi-se para o nível mais alto de sanções, embora em alguns casos se possa ir mais longe. Não são apenas as sanções económicas e financeiras sem precedentes: diplomaticamente, a Rússia hoje está isolada. Na Assembleia Geral da ONU só houve quatro votos ao lado da Rússia.

Percebe a posição da China?

A China absteve-se. Está desconfortável nesta situação, porque está a perder a confiança que gostaria de te der em muitos países do terceiro mundo. Quando a China faz um discurso anti-ocidental, procura ter pelo menos, o apoio da maioria dos países de África, da América Latina ou da Ásia. Neste caso, está no grupo largamente minoritário. A esmagadora maioria da comunidade internacional, 141, votou a favor desta resolução, apenas cinco contra, e 35 abstenções. Se se consumar esse isolamento da Rússia, vai depende cada vez mais da China, o que me parece um erro. Putin, que a meu ver sabe joga taticamente, não sabe joga estrategicamente. Esta decisão é um erro do ponto de vista estratégico para a Rússia, mesmo do ponto de vista russo.

A entrega de armas em território ucraniano pode levar as tropas russas quererem bombardear a fronteira, por hipótese polaca, por onde podem entrar essas armas?

Aí seria a Rússia que estaria a atacar diretamente um país da UE e da NATO. 

Eles podem considerar que a entrega de armas é um ato de guerra.

O que a Rússia está a fazer é um ato de guerra e pode-se considerar que há o direito legítimo do país a defender-se. Quando um país ajuda outro a defender-se, é uma defesa não é uma posição de agressão. Se os países da NATO decidiram não intervir eles próprios diretamente no conflito, o mínimo que podem fazer é ajudar a Ucrânia a defender-se. A opinião púbica não aceitaria que o mundo assistisse passivamente a um massacre, que ainda pode ter consequências maiores. O mínimo que se pode fazer é ajudar. 

Os países Ocidentais não têm alguma responsabilidade, que ajuda a justificar a retórica russa por causa de intervenções como a da NATO na Sévia, a invasão do Iraque, a intervenção na Líbia ou outros? Agora é Putin que quer fazer o seu “regime change”…

Cada um deles é um caso diferente. Mesmo admitindo que fossem comparáveis, isso não justifica o que se está a passar. Claro que esses são os argumentos de Putin. A questão é que estamos a analisar este caso concreto. Qual a justificação que Putin expressa tão claramente, de que a Rússia partilha uma herança civilizacional e espiritual comum, bombardear os seus irmãos eslavos e cristãos? Não há justificação possível. Mesmo que o ocidente tivesse alguma responsabilidade, provavelmente até tem, isso não justifica que não condenemos de forma veemente o que é inaceitável sob todos os pontos de vista.