Espanha

Polícia catalã desculpa-se dizendo que não podia deter Puigdemont sem gerar “desordem pública”

Comandantes dos Mossos d’Esquadra não aceitam qualquer autocrítica e classificam conduta do antigo presidente do governo regional como “imprópria”. Puigdemont deu que falar no dia da posse de Salvador Illa como presidente do executivo catalão, mas este alcançou o feito de ser o primeiro não independentista a ocupar o cargo em catorze anos

O comissário chefe da polícia regional catalã, Eduard Sallent, deu explicações sobre um episódio que envergonha aquele corpo de segurança
JOSEP LAGO/AFP/Getty Images

Carles Puigdemont está de volta à Bélgica. O antigo presidente do governo autonómico da Catalunha (2016-17) protagonizou, nas últimas horas, um rocambolesco episódio de escapismo face aos corpos e forças de segurança do Estado, que tinham a obrigação de detê-lo. Em breve dias, o político nacionalista dará explicações sobre o seu desafio a Espanha, assegura Jordi Turull, secretário-geral do partido Juntos pela Catalunha (JxC, direita independentista, chefiado por Puigdemont).

Turull admitiu em público ter tido participação direta na nova fuga do antigo governante. Este conseguiu contornar o pesado dispositivo policial mobilizado para a sua captura, ao abrigo de um mandado de busca e captura em vigor, emitido por um magistrado do Tribunal Supremo.

A fugaz presença de Puigdemont em Espanha, justificada com o seu compromisso de estar presente na sessão de investidura de Salvador Illa como presidente do executivo catalão, acabou por ofuscar esse importante ato político no Parlamento da Catalunha. O líder do Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC) — ramo regional do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda), do primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez — é o primeiro chefe de governo não independentista em catorze anos.

A região passou esse período sumida num processo de tentativa de secessão que Puigdemont encabeçou, a confirmação parlamentar de Illa à frente do governo catalão encerra, na opinião da maioria dos analistas, o chamado procès independentista, que chegou a ter 60% da população. Hoje os apoiantes da independência são minoritários.

Gato escondido com o rabo de fora

A atenção da opinião pública centrou-se, nas últimas horas, nos detalhes anedóticos do regresso de Puigdemont a Espanha e da subsequente fuga, e não na relevância política dos atos que o ex-presidente quis boicotar. Turull afirmou esta sexta-feira a vários meios de comunicação, entre eles o Expresso, que o foragido passou dias escondido na Catalunha antes de aparecer, quinta-feira de manhã, num comício com 3500 fiéis, sobretudo funcionários da administração pública catalã.

Os dois correligionários jantaram juntos num restaurante de Barcelona, terça-feira, e, seguindo o secretário-geral do JxC, Puigdemont decidiu desaparecer porque, depois do discurso perante os seguidores que o aclamaram junto do Parque da Cidadela, recinto que alberga a sede do Parlamento regional, percebeu que “fora montado um aparato policial nunca antes visto na Catalunha, nem com terroristas nem contra o maior dos delinquentes”. O antigo presidente fugiu, alega, porque “intuiu que não poderia entrar no Parlamento para exercer os seus direitos políticos” como deputado autonómico.

Os responsáveis dos Mossos d’Esquadra (polícia regional catalã) encarregados de aplicar o mandado de detenção contra Puigdemont admitem ter sofrido um golpe na sua credibilidade. Ainda assim, asseguram num comunicado que “o trabalho decorreu de forma exemplar, conforme os planos previstos”. O comissário chefe os Mossos, Eduard Sallent, explicou numa conferência de imprensa, ao início da tarde de sexta-feira, que a operação, em que participaram mais de 600 agentes daquela força de segurança, visava deter Puigdemont “no momento mais adequado para não gerar desordem pública”.

Após o seu discurso de seis minutos, diz Sallent, o antigo presidente foi protegido por “uma massa de pessoas que formaram um muro humano”, ocultando-o e conduzindo-o até um automóvel de cor branca, no qual escapou da zona. O comissário criticou duramente Puigdemont, cujo comportamento qualificou de “impróprio”.

Sallent confirmou que dois colegas seus foram detidos por alegada cumplicidade no plano de escape de Puigdemont. Um deles é proprietário do carro de marca Honda em que este último viajou, acompanhado em parte do trajeto por Jordi Turull. Outro agente colaborou no plano. Ambos foram deixados em liberdade pelo juiz, devendo prestar declarações mais tarde. Ibon Domínguez, porta-voz do sindicato da Polícia Nacional, Jupol, afirmou ao Expresso que “o grande erro foi deixar apenas nas mãos dos Mossos a responsabilidade pela captura de Puigdemont, porque toda a gente sabe que este corpo policial tem uma cúpula altamente politizada”. Domínguez considerou o dispositivo utilizado “uma vergonha e um autêntico fracasso”.

Puigdemont não está amnistiado

O magistrado que assinou o mandado de captura contra Puigdemont, Pablo Llarena, pediu explicações formais aos dirigentes dos Mossos d’Esquadra e do Ministério do Interior espanhol. Quer que clarifiquem as circunstâncias em que foi impossível deter o político independentista. Puigdemont ainda não beneficia da amnistia aprovada pelo Parlamento espanhol há dois meses porque a Justiça considera não amnistiáveis os seus presumíveis delitos de desvio de fundos públicos.

Os meios de comunicação mais representativos reagiram de forma diversa aos recentes acontecimentos, que põem em causa a capacidade dos vários corpos policiais e serviços de informação. recorda-se, especialmente, que a ocultação de Puigdemont e a possibilidade de fugir aos seus perseguidores tem paralelo na ação do governo regional que ele chefiava, em 2017, para esconde os preparativos do referendo ilegal de autodeterminação de 1 de outubro desse ano. Ninguém sabe explicar como nesse dia, de manhã cedo, milhares de escolas e locais públicos em toda a Catalunha estavam perfeitamente preparados para a consulta popular, munidos de urnas e boletins de voto.

O diário “El Mundo”, crítico do Executivo de Sánchez e das cedências ao independentismo catalão, escreve num editorial, esta sexta-feira, que “é um fracasso do Estado de Direito que Puigdemont não tenha sido ao cruzar a fronteira”. Vê neste episódio “una crise de excecionalidade humilhante para o Estado” e frisa que “uma democracia avançada é incompatível com os factos ocorridos em Barcelona”.

“Carles Puigdemont humilhou o Estado, com a conivência de alguns cuja função era protegê-lo. A burla às instituições e à cidadania é gravíssima e procede do aliado parlamentar que mantém Pedro Sánchez no poder, o que volta a realçar a irresponsabilidade do Governo, ao assumir como sócio para reconfigurar o Estado um partido cuja razão de ser é atuar contra a democracia e o próprio Estado”, escreve este jornal conservador.

O seu concorrente progressista “El País” prefere sublinhar o saldo positivo da jornada: a investidura de um presidente do governo catalão não independentista ao fim de 14 anos: “Se Puigdemont pretendia roubar protagonismo a Salvador Illa, deixar em situação embaraçosa o governo cessante da Esquerda Republicana da Catalunha e dar munições ao Partido Popular [PP, centro-direita] e ao Vox [extrema-direita] para o seu permanente bombardeamento ao Governo de Sánchez, só alcançou este último objetivo”.

“As astúcias cénicas de Puigdemont não podem ocultar o rotundo fracasso do seu falso regresso. Só uns poucos milhares dos seus partidários se concentraram para recebê-lo e ouvir a sua breve arenga”, lê-se noutro parágrafo. “Não entrou no Parlamento, como tinha anunciado.”

Apoio condicionado às exigências dos separatistas

O saldo positivo da investidura de Illa põe à frente do Executivo catalão uma pessoa experiente e sensata, opinam fontes consultadas pelo Expresso. Concordando ou não com as suas posições políticas, respeitam Illa pela sua trajetória, louvam o seu sentido prático e negociador e a sua grande capacidade de trabalho.

Filósofo de formação académica, Illa, de 58 anos, obteve atenção pública durante a sua passagem pelo Ministério da Saúde no período mais grave da pandemia. Terminada essa tarefa, pediu a Sánchez para regressar à sua Catalunha natal, para funções com menos implicações comunicativas. O chefe do Governo espanhol viu nele o candidato ideal para romper a dinâmica separatista do governo catalão. Illa ganhou eleições em 2021 (mas os partidos independentistas formaram uma maioria alternativa) e no passado dia 12 de maio.

No discurso de investidura, quinta-feira, Illa fez um apelo à superação dos confrontos identitários entre catalães e comprometeu-se a avançar para um modelo de Estado “confederal e plurinacional”. Pediu que a recente lei de amnistia fosse aplicada de forma rápida, geral “e sem subterfúgios” e aludiu indiretamente à presença de Puigdemont em Barcelona, ao afirmar que “ninguém deve ser detido por atos que os representantes dos cidadãos decidiram amnistiar”.

Os sócios de investidura de IllaEsquerda Republicana (ERC, independentista) e Em Comum Somar (esquerda radical, que a nível nacional é aliada de coligação de Sánchez) — recordaram-lhe que o pacto com ele é apenas para a investidura “e não para a legislatura”. Se não cumprir os acordos firmados, avisam, incluindo a soberania fiscal para a Catalunha e o perdão de parte da sua dívida histórica, retirar-lhe-ão o apoio.