Espanha

Vox rompe governos regionais com o PP… que vê nisso uma ocasião para crescer ao centro

Partido de extrema-direita considera uma “traição” que Alberto Núñez Feijóo aceite a distribuição uma mínima quantidade de imigrantes menores entre as comunidades autónomas espanholas. Socialistas, à frente do Governo central, querem impor solidariedade entre regiões

Santiago Abascal, líder do Vox (à direita na imagem), rompeu os pactos que permitiam ao seu partido ser parceiro de coligação do PP em vários governos regionais espanhóis
Eduardo Parra/Europa Press/Getty Images

A crise migratória que assola Espanha, consequência da sua posição de fronteira sul e ponto de entrada na União Europeia (UE), gerou uma crise política interna de primeira ordem. O partido de extrema-direita Vox rompeu, quinta-feira, a aliança que até ontem o unia à maior força da oposição — Partido Popular (PP, centro-direita) — em vários governos regionais e municipais.

O motivo, previamente enunciado como ameaça pelo chefe do Vox, Santiago Abascal, é a aceitação pelo presidente do PP, Alberto Núñez Feijóo, de que um grupo reduzido de menores estrangeiros não acompanhados (conhecidos pelo acrónimo ‘menas’, que passou a ser usado em tom pejorativo pelos dirigentes do Vox) acolhidos nas ilhas Canárias sejam distribuídos de forma equitativa pelas demais comunidades autónomas. Será um mínimo primeiro passo para aliviar a pressão que o arquipélago já não aguenta pela chegada de imigrantes vindos do continente africano.

O Vox, cuja Comissão Executiva Nacional se reuniu de urgência durante várias horas, quinta-feira à tarde, tomou a decisão de cancelar os acordos de colaboração com o PP em seis comunidades autónomas: Aragão, Extremadura, Castela e Leão, Comunidade Valenciana, Múrcia e ilhas Baleares. Desde as últimas eleições autárquicas e regionais, em maio de 2023, governava as cinco primeiras em coligação e, na última, dava apoio parlamentar a um executivo minoritário do partido de Feijóo.

As eleições de 2023 deram grande poder local à direita e à extrema-direita espanholas e até levaram o primeiro-ministro Pedro Sánchez a antecipar as legislativas para julho desse ano. O PP venceu esse ato eleitoral, consolidando a sua tendência ascendente, mas não obteve apoios suficientes para formar Governo. O socialista acabaria por ser reconduzido, à frente de uma coligação com a frente de esquerda radical Somar e com o apoio parlamentar de independentistas catalães e bascos e partidos regionalistas.

Os analistas comentaram, na altura, que as alianças regionais entre o PP e o Vox, anunciadas durante a campanha para as legislativas, prejudicaram o crescimento do centro-direita em Espanha. Hoje, dirigentes do PP veem na rutura decidida por Abascal uma oportunidade para o eleitorado aplaudir o seu afastamento da extrema-direita, que, como as que proliferam no resto da Europa, mantém posições xenófobas, racistas e anti-imigração.

“Movimento desproporcionado”

Dirigentes conservadores, como a secretária-geral do partido (Cuca Gamarra), o líder parlamentar (Miguel Tellado) e o secretario de Comunicação (Borja Sempre) fizeram declarações nesse sentido, quinta-feira. Gamarra fala da decisão do Vox como “movimento absolutamente desproporcionado”. No mesmo dia, os dois partidos tinham chegado a acordo para revogar, na região de Valência, a lei de memória histórica aprovada por um anterior governo autonómico de esquerda.

Imigrantes que tinham entrado em Espanha pelas Canárias e que foram mais tarde acolhidos da Galiza
Elena Fernández/Europa Press/Getty Images

Em Washington, onde assistia à cimeira da NATO, Sánchez afirmou: “Hoje é um grande dia para Espanha. Somos um país melhor”. Isto apesar de o Executivo a que preside e o seu Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda) irem perder o grande argumento da proximidade entre o PP e a direita radical.

A estabilidade dos governos regionais em causa não parece, por ora, ameaçada. Na noite de quinta-feira deram-se as primeiras demissões de altos dirigentes, mas em todas estas autonomias há orçamentos anuais aprovados, o que dá sustento à governabilidade. A direção do PP fará todos os esforcos possíveis para evitar eleições antecipadas naqueles territórios.

Já a infraestrutura de poder do Vox será seriamente afetada pelo fim da aliança com o PP: mais de 100 altos titulares, entre ministros regionais, diretores-gerais e administradores de empresas públicas terão de abandonar os seus cargos. Esta sangria económica e de influência agravar-se-á bastante se este divórcio se alastrar aos municípios, o que ainda não é claro. O Vox está presente em mais de 100, incluindo Valência, Valladolid, Toledo ou Burgos.

Vox reage ao êxito do YouTuber radical

O corte entre PP e Vox acontece num tempo de reorientação da estratégia do partido extremista, em boa parte motivada pelo nascimento do grupo Acabou-se a Festa (SALF, na sigla espanhola), do YouTuber populista Alvise Pérez, que obteve 800 mil votos e três deputados nas eleições europeias de junho. O Vox mudou de bancada no Parlamento Europeu, trocando os Conservadores e Reformistas chefiados pela primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, pelos Patriotas por Europa, fundados pelo primeiro-ministro húngaro, Víktor Orban. O novo vice-presidente desta aglomeração é o espanhol Herman Terstch, do Vox. O SALF ainda não se inseriu num grupo político europeu.

Não consta que a decisão de Abascal tenha sido contestada entre os dirigentes do Vox. Dirigentes do partido presentes na reunião de quinta-feira asseguram ao Expresso que a discussão aqueceu, mas as propostas do líder tiveram aprovação unânime. Perante jornalistas, após o encontro, Abascal acusou o PP de protagonizar “a maior fraude da política espanhola”. A seu ver, o pacto sobre distribuição de imigrantes é “mais um” entre o PSOE e o PP, “dois partidos que fingem lutar enquanto dividem entre si juízes, a Junta Eleitoral Central, as comissões parlamentares, a RTVE [radiotelevisão pública] e cadeiras em Bruxelas”.

Juan García Gallardo, militante do Vox e iro vice-presidente demissionário do governo regional de Castela e Leão, culpa o PP e Feijóo de “traição” por terem aceitado o acordo com os socialistas. Descreve-o como “colaboração com as máfias ilegais do tráfico de seres humanos”.

Impor a distribuição equitativa

O detonador da crise que levou o Vox a prescindir do conforto conquistado após as eleições locais é a proposta do Governo espanhol para alterar o artigo 35 da Lei de Estrangeiros, tornando obrigatória a distribuição equitativa de menores não acompanhados em todas as regiões, quando forem ultrapassadas em 150% as capacidades de acolhimento dos pontos nevrálgicos de entrada de imigrantes.

Para esse fim, o Executivo de Sánchez convocou para quarta-feira passada, em Tenerife (Canárias), uma reunião da Conferência Sectorial da Infância e Juventude. Dali saiu apenas o compromisso, apoiado pelas regiões governadas pelo PP, de distribuir 347 dos cerca de 6000 menores atualmente acolhidos nas Canárias. É um pequeno alívio para uma situação insustentável, como alertou o presidente do governo do arquipélago, Fernando Clavijo, do partido regionalista Coligação Canária (CC), que governa em aliança com o PP. “Neste momento somos incapazes de garantir os direitos dos miúdos. Estamos numa situação de emergência”.

A mudança na Lei de Estrangeiros foi adiada, a pedido dos representantes do PP, que pediram tempo para estudar o projeto que fixa critérios de proporcionalidade para distribuir imigrantes menores, como rendimento da região em causa, população e dispersão da mesma ou nível prévio de admissão de imigrantes. Com tais critérios, caso se aplicasse hoje a modificação prevista, deveriam ser levados para a Espanha continental e repartidos pelo seu território nada menos de 3000 dos cerca de 6000 “menas” acolhidos nas ilhas, 94% dos quais são rapazes e nacionalidade marroquina.

Bem para lá da capacidade

A conferência de Tenerife fixou um princípio de dotação económica de aproximadamente 110 euros por dia por cada menor recebido e uma verba extraordinária de 250 mil a 500 mil euros para os governos autonómicos afetados. O Executivo de Sánchez está decidido a apresentar o projeto de lei ao Parlamento antes do final do mês, embora ainda não tenha assegurado a anuência do PP.

As Canárias têm capacidade para acolher 2000 menores estrangeiros não acompanhados. Outros dois pontos de chegada de imigrantes, as cidades africanas de Ceuta e Melilha, dispõem de instalações para receber mais 200, no máximo, e já ali instalam 500. No ano passado chegaram às Canárias, Ceuta e Melilha mais de 40 mil imigrantes. Nos cinco primeiros meses de 2024 o número eleva-se a 20 mil.

Os serviços do Ministério do Interior espanhol destacados para Marrocos, Mauritânia e Senegal detetaram não menos de 70 mil pessoas dispostas a dar o salto para a Europa, através de Espanha, usando embarcações precárias na perigosa rota atlântica. O PP, de que um dirigente chegou a exigir a presença da Armada espanhola nas águas costeiras nortea-fricanas para impedir a passagem dos imigrantes, pede agora formalmente à UE que mobilize agentes da Frontex e da Agência Europeia de Asilo para colaborar com funcionários espanhóis nas tarefas burocráticas de registo dos acolhidos.