A crise migratória que assola Espanha, consequência da sua posição de fronteira sul e ponto de entrada na União Europeia (UE), gerou uma crise política interna de primeira ordem. O partido de extrema-direita Vox rompeu, quinta-feira, a aliança que até ontem o unia à maior força da oposição — Partido Popular (PP, centro-direita) — em vários governos regionais e municipais.
O motivo, previamente enunciado como ameaça pelo chefe do Vox, Santiago Abascal, é a aceitação pelo presidente do PP, Alberto Núñez Feijóo, de que um grupo reduzido de menores estrangeiros não acompanhados (conhecidos pelo acrónimo ‘menas’, que passou a ser usado em tom pejorativo pelos dirigentes do Vox) acolhidos nas ilhas Canárias sejam distribuídos de forma equitativa pelas demais comunidades autónomas. Será um mínimo primeiro passo para aliviar a pressão que o arquipélago já não aguenta pela chegada de imigrantes vindos do continente africano.
O Vox, cuja Comissão Executiva Nacional se reuniu de urgência durante várias horas, quinta-feira à tarde, tomou a decisão de cancelar os acordos de colaboração com o PP em seis comunidades autónomas: Aragão, Extremadura, Castela e Leão, Comunidade Valenciana, Múrcia e ilhas Baleares. Desde as últimas eleições autárquicas e regionais, em maio de 2023, governava as cinco primeiras em coligação e, na última, dava apoio parlamentar a um executivo minoritário do partido de Feijóo.
As eleições de 2023 deram grande poder local à direita e à extrema-direita espanholas e até levaram o primeiro-ministro Pedro Sánchez a antecipar as legislativas para julho desse ano. O PP venceu esse ato eleitoral, consolidando a sua tendência ascendente, mas não obteve apoios suficientes para formar Governo. O socialista acabaria por ser reconduzido, à frente de uma coligação com a frente de esquerda radical Somar e com o apoio parlamentar de independentistas catalães e bascos e partidos regionalistas.
Os analistas comentaram, na altura, que as alianças regionais entre o PP e o Vox, anunciadas durante a campanha para as legislativas, prejudicaram o crescimento do centro-direita em Espanha. Hoje, dirigentes do PP veem na rutura decidida por Abascal uma oportunidade para o eleitorado aplaudir o seu afastamento da extrema-direita, que, como as que proliferam no resto da Europa, mantém posições xenófobas, racistas e anti-imigração.
“Movimento desproporcionado”
Dirigentes conservadores, como a secretária-geral do partido (Cuca Gamarra), o líder parlamentar (Miguel Tellado) e o secretario de Comunicação (Borja Sempre) fizeram declarações nesse sentido, quinta-feira. Gamarra fala da decisão do Vox como “movimento absolutamente desproporcionado”. No mesmo dia, os dois partidos tinham chegado a acordo para revogar, na região de Valência, a lei de memória histórica aprovada por um anterior governo autonómico de esquerda.
Em Washington, onde assistia à cimeira da NATO, Sánchez afirmou: “Hoje é um grande dia para Espanha. Somos um país melhor”. Isto apesar de o Executivo a que preside e o seu Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda) irem perder o grande argumento da proximidade entre o PP e a direita radical.
A estabilidade dos governos regionais em causa não parece, por ora, ameaçada. Na noite de quinta-feira deram-se as primeiras demissões de altos dirigentes, mas em todas estas autonomias há orçamentos anuais aprovados, o que dá sustento à governabilidade. A direção do PP fará todos os esforcos possíveis para evitar eleições antecipadas naqueles territórios.
Já a infraestrutura de poder do Vox será seriamente afetada pelo fim da aliança com o PP: mais de 100 altos titulares, entre ministros regionais, diretores-gerais e administradores de empresas públicas terão de abandonar os seus cargos. Esta sangria económica e de influência agravar-se-á bastante se este divórcio se alastrar aos municípios, o que ainda não é claro. O Vox está presente em mais de 100, incluindo Valência, Valladolid, Toledo ou Burgos.
Vox reage ao êxito do YouTuber radical
O corte entre PP e Vox acontece num tempo de reorientação da estratégia do partido extremista, em boa parte motivada pelo nascimento do grupo Acabou-se a Festa (SALF, na sigla espanhola), do YouTuber populista Alvise Pérez, que obteve 800 mil votos e três deputados nas eleições europeias de junho. O Vox mudou de bancada no Parlamento Europeu, trocando os Conservadores e Reformistas chefiados pela primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, pelos Patriotas por Europa, fundados pelo primeiro-ministro húngaro, Víktor Orban. O novo vice-presidente desta aglomeração é o espanhol Herman Terstch, do Vox. O SALF ainda não se inseriu num grupo político europeu.
Não consta que a decisão de Abascal tenha sido contestada entre os dirigentes do Vox. Dirigentes do partido presentes na reunião de quinta-feira asseguram ao Expresso que a discussão aqueceu, mas as propostas do líder tiveram aprovação unânime. Perante jornalistas, após o encontro, Abascal acusou o PP de protagonizar “a maior fraude da política espanhola”. A seu ver, o pacto sobre distribuição de imigrantes é “mais um” entre o PSOE e o PP, “dois partidos que fingem lutar enquanto dividem entre si juízes, a Junta Eleitoral Central, as comissões parlamentares, a RTVE [radiotelevisão pública] e cadeiras em Bruxelas”.
Juan García Gallardo, militante do Vox e iro vice-presidente demissionário do governo regional de Castela e Leão, culpa o PP e Feijóo de “traição” por terem aceitado o acordo com os socialistas. Descreve-o como “colaboração com as máfias ilegais do tráfico de seres humanos”.
Impor a distribuição equitativa
O detonador da crise que levou o Vox a prescindir do conforto conquistado após as eleições locais é a proposta do Governo espanhol para alterar o artigo 35 da Lei de Estrangeiros, tornando obrigatória a distribuição equitativa de menores não acompanhados em todas as regiões, quando forem ultrapassadas em 150% as capacidades de acolhimento dos pontos nevrálgicos de entrada de imigrantes.
Para esse fim, o Executivo de Sánchez convocou para quarta-feira passada, em Tenerife (Canárias), uma reunião da Conferência Sectorial da Infância e Juventude. Dali saiu apenas o compromisso, apoiado pelas regiões governadas pelo PP, de distribuir 347 dos cerca de 6000 menores atualmente acolhidos nas Canárias. É um pequeno alívio para uma situação insustentável, como alertou o presidente do governo do arquipélago, Fernando Clavijo, do partido regionalista Coligação Canária (CC), que governa em aliança com o PP. “Neste momento somos incapazes de garantir os direitos dos miúdos. Estamos numa situação de emergência”.
A mudança na Lei de Estrangeiros foi adiada, a pedido dos representantes do PP, que pediram tempo para estudar o projeto que fixa critérios de proporcionalidade para distribuir imigrantes menores, como rendimento da região em causa, população e dispersão da mesma ou nível prévio de admissão de imigrantes. Com tais critérios, caso se aplicasse hoje a modificação prevista, deveriam ser levados para a Espanha continental e repartidos pelo seu território nada menos de 3000 dos cerca de 6000 “menas” acolhidos nas ilhas, 94% dos quais são rapazes e nacionalidade marroquina.
Bem para lá da capacidade
A conferência de Tenerife fixou um princípio de dotação económica de aproximadamente 110 euros por dia por cada menor recebido e uma verba extraordinária de 250 mil a 500 mil euros para os governos autonómicos afetados. O Executivo de Sánchez está decidido a apresentar o projeto de lei ao Parlamento antes do final do mês, embora ainda não tenha assegurado a anuência do PP.
As Canárias têm capacidade para acolher 2000 menores estrangeiros não acompanhados. Outros dois pontos de chegada de imigrantes, as cidades africanas de Ceuta e Melilha, dispõem de instalações para receber mais 200, no máximo, e já ali instalam 500. No ano passado chegaram às Canárias, Ceuta e Melilha mais de 40 mil imigrantes. Nos cinco primeiros meses de 2024 o número eleva-se a 20 mil.
Os serviços do Ministério do Interior espanhol destacados para Marrocos, Mauritânia e Senegal detetaram não menos de 70 mil pessoas dispostas a dar o salto para a Europa, através de Espanha, usando embarcações precárias na perigosa rota atlântica. O PP, de que um dirigente chegou a exigir a presença da Armada espanhola nas águas costeiras nortea-fricanas para impedir a passagem dos imigrantes, pede agora formalmente à UE que mobilize agentes da Frontex e da Agência Europeia de Asilo para colaborar com funcionários espanhóis nas tarefas burocráticas de registo dos acolhidos.