Internacional

Europa vai ser “destruída” pela energia verde e pela imigração, ONU “promove invasões”: Trump e os outros discursos no grande palco da ONU

Num discurso sem fio condutor pontuado pelo auto-elogio e por generalizações, quando não mentiras, sobre aquecimento global ou imigração, Trump fez na Assembleia geral uma das suas mais duras intervenções contra a própria instituição, que acusou de criar invasões. Em outros discursos dignos de nota, Lula da Silva, Recep Tayyip Erdogan e o rei Abdullah II da Jordânia focaram-se no problema de Gaza.

LUKAS COCH

Uma longa hora sobre os seus triunfos, uma espécie de best of dos seus anos à frente dos destinos dos Estados Unidos da América (EUA) e pouquíssimas palavras de esperança para o mundo caso esse mundo insista em continuar a não concordar com as tarifas, as políticas, as sanções e a visão geopolítica do seu Presidente. Eis o resumo do discurso de Donald Trump na Assembleia-Geral das Nações Unidas, esta terça-feira.

Boa parte da sua intervenção, que durou mais de três vezes os 15 minutos destinados a cada chefe de Estado, foi passada a denegrir a própria instituição que lhe deu o púlpito de onde discursou.

Depois de ter começado por se queixar de que as escadas rolantes e o teleponto estavam avariados, o Presidente dos EUA lançou-se contra o papel e o legado das Nações Unidas em temas como a manutenção de paz, imigração e alterações climáticas. “Acabei com sete guerras, falei com os líderes de cada um destes países, e nunca recebi sequer um telefonema das Nações Unidas a oferecer ajuda para finalizar os acordos”, lastimou Trump.

A saber: Camboja e Tailândia, Kosovo e Sérvia, República Democrática do Congo e Ruanda, Paquistão e Índia, Israel e Irão, Egito e Etiópia, Arménia e Azerbaijão. Muito haveria para dizer sobre estes conflitos, estejam eles dormentes ou abertos, nomeadamente saber se os países beligerantes se diriam hoje em paz, mas Trump meteu todos no mesmo grupo de problemas que garante ter resolvido.

Por isso mesmo, disse o americano, “toda a gente acha” que merece o Nobel da Paz. E, mais uma vez, as escadas. “Das Nações Unidas só recebi uma escada rolante que, a meio da subida, parou de repente. Se a primeira-dama não estivesse em excelente forma, teria caído. Mas ela está em excelente forma. Ambos estamos em boa forma. Ficámos de pé”, disse o Presidente, entre risadas.

Invasões e fronteiras

A ONU é apenas tão forte quanto a força coletiva das suas diferentes vozes, limitada por vetos do Conselho de Segurança. Não consegue ditar políticas, mas a necessidade de diálogo como caminho para o consenso não fez parte do discurso de Trump, que falou sempre como se a ONU pudesse impedir coisas como os fenómenos migratórios, que classificou como “o maior problema” da atualidade.

“É suposto a ONU parar invasões, não criá-las”, disse o Presidente dos EUA, usando uma palavra normalmente usada em contexto de guerra (a “invasão” da Ucrânia, por exemplo) para falar de outra coisa. “Nos EUA rejeitamos a ideia de que milhões de pessoas de terras longínquas possam viajar meio mundo para desrespeitar as nossas fronteiras, causar imenso crime e esgotar a nossa segurança social”, acrescentou, acusando ainda a ONU de “financiar um assalto às fronteiras ocidentais” por ter dado “milhões” a imigrantes da América do Sul, muitos dos quais com intenções de entrar nos Estados Unidos. O auxílio humanitário das Nações Unidas a pessoas deslocadas pela fome ou pela violência é uma parte central do seu mandato desde a sua fundação, e a ligação entre esta ajuda e os números de entradas ilegais nos EUA nunca foi estabelecida por nenhuma organização competente na área.

Num dos mais fortes ataques recentes aos aliados europeus, Trump aconselhou os países do Ocidente a “proteger os seus cidadãos”, porque “alguns países europeus estão a ser destruídos pela imigração”. O Presidente não citou qualquer exemplo.

Num discurso sem fio condutor, à imagem do que fizera, também ao longo de uma hora, nas cerimónias fúnebres de Charlie Kirk, o influencer ultraconservador morto a tiro enquanto discursava numa universidade, Trump passou da imigração para o “problema” da energia verde, o “embuste”, o “engodo” que vai “destruir os países” que aceitarem a transição energética. Afirmou que a ideia de uma pegada de carbono é nonsense e criticou a Europa por reduzir as suas emissões: “Parabéns, Europa, ótimo trabalho, custaste a ti própria muitos empregos, muitas fábricas”. Mais atarde, em declarações aos jornalistas à margem do discurso, Trump disse que “adora as pessoas da Europa” e e quer evitar que seja “devastada pela espada de dois gumes” (imigração e políticas verdes).

Havia a expectativa de que se focasse nos desafios geopolíticos centrais, principalmente Ucrânia e Gaza, mas não aprofundou nenhum deles. Disse que o reconhecimento do Estado da Palestina era uma forma de “permitir a continuidade do conflito”, pediu a libertação de todos os reféns e lastimou que os Europeus, a China e a Índia continuem a comprar produtos energéticos à Rússia, país sobre o qual prometeu, outra vez, impor sanções caso não aceite parar de atacar a Ucrânia. A promessa tem sido repetida, sem quaisquer consequências para os civis ucranianos, que há quase quatro anos são consecutivamente atacados pelas forças russas. Não ofereceu apoio explícito à construção de mais colonatos israelitas na Cisjordânia, mas também não criticou a intenção.

Depois ziguezagueou de volta à imigração.“Olhem para Londres”, disse. “Péssimo presidente da câmara, querem avançar para a Sharia”, a o sistema jurídico islâmico que, claro, não está vigente na capital britânica apenas por esta ter um mayor de fé islâmica, Sadiq Khan, que Trump fez questão de dizer que não tinha sido convidado para o banquete em Windsor.

No fim do discurso, Trump informou a audiência de que o boné com a frase “Trump tinha razão em tudo” é o que mais vende. Até porque “é verdade”, disse. “Tenho estado certo em tudo”, prosseguiu o Presidente dos EUA, muito menos constrangido pela observação das convenções e protocolos do que no seu primeiro mandato.

Lula da Silva foca-se no Sul Global e na soberania judicial do Brasil

Antes de Trump falara Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente do Brasil e um dos maiores apoiantes de uma renovação das Nações Unidas, onde as decisões mais relevantes passam tantas vezes ao lado de nações muito populosas, com fortes economias, que não têm forma de votar porque o Conselho de Segurança é o organismo decisório máximo da ONU.

A par com outras nações, como a China, a Rússia, a Índia, a Indonésia, a África do Sul ou a Nigéria, o Brasil tem sido voz dura contra a rigidez da ONU e os ditames dos mais fortes. “Os ataques à soberania, as sanções arbitrárias e as intervenções unilaterais estão a tornar-se regra. Há um claro paralelismo entre a crise do multilateralismo e o enfraquecimento que ocorre quando falhamos em agir perante atos arbitrários”, disse o brasileiro, atirando críticas a Trump por ter tentando pressionar o sistema judicial brasileiro por causa do julgamento do seu aliado e ex-Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, recentemente condenado ter orquestrado uma tentativa de golpe de Estado.

“Não há justificação para medidas unilaterais e arbitrárias contra as nossas instituições e a nossa economia. A agressão contra a independência do poder judicial é inaceitável. Essa ingerência nos assuntos internos é apoiada por uma extrema-direita subserviente, nostálgica de hegemonias passadas”, alertou Lula.

Trump havia de responder-lhe, no seu discurso, dizendo que o Brasil, como todas as nações que se mantêm afastadas dos Estados Unidos, “vai falhar”. Acabou por anunciar, não obstante, que vai encontrar-se com Lula da Silva em breve.

Como quase sempre nas arenas internacionais onde tem discursado, o Presidente do Brasil não deixou de fora as questões laborais e da igualdade, num encadeamento de frases que também não foi inocente. “As democracias sólidas vão além do ritual eleitoral. A sua força pressupõe a redução das desigualdades e a garantia dos direitos mais básicos: alimentação, segurança, trabalho, habitação, educação e saúde. A democracia enfraquece quando fecha as suas portas e culpa os migrantes pelos males do mundo”.

Sem deixar de mencionar “o genocídio em Gaza”, a par com o “indesculpável, sob qualquer ângulo” ataque do grupo terrorista Hamas de 7 de outubro de 2023, Lula lembrou que as iniciativas para a paz na Ucrânia pensadas a par com a China continuam em cima da mesa.

Erdogan e rei da Jordânia dedicam discursos a Gaza

Sem surpresas, o mais virulento dos discursos contra Israel foi proferido pelo Presidente turco, que levou para Nova Iorque fotografias de crianças subnutridas e dedicou quase todo o seu longo discurso à Faixa de Gaza. “Nos últimos 23 meses, uma criança foi assassinada por Israel em Gaza a cada hora. Não são apenas números. Cada um é uma pessoa, um ser humano, inocentes. As pessoas já não estão a ser mortas só com armas banais, mas também com a arma da fome. No século XXI, sob o olhar do mundo civilizado, 428 pessoas já morreram de fome. Dessas 428, 146 eram crianças, e este número aumenta todos os dias. Agora, vou mostrar-vos uma fotografia que retrata a vida quotidiana em Gaza”, começou Recep Tayyip Erdogan, mostrando pessoas com tachos e alguidares na mão à espera de alimentos.

Além de Gaza, Erdogan pediu que o mundo pudesse incluir a República Turca do Norte do Chipre, onde vivem maioritariamente cipriotas turcos, entre as nações reconhecidas, para que os habitantes do norte da ilha divida de Chipre pudessem ter relações económicas e sociais com o resto do mundo.

Abdullah II da Jordânia lembrou à Assembleia-Geral que as injustiças cometidas contra os palestinianos duram há décadas e destacou o fracasso da ONU e da comunidade internacional neste dossiê. A questão "está na agenda da ONU há oito décadas", afirmou. "Quanto tempo mais continuaremos a contentar-nos com condenações verbais sem ações concretas? No conflito israelo-palestiniano, parece que o que é discutido nos escritórios oficiais é apenas teórico, mas o sofrimento no terreno é realidade", acrescentou.