A carreira política de Boris Johnson pode estar a viver as suas últimas horas, segundo vários órgãos de comunicação britânicos. O escândalo sexual que envolve o deputado Chris Pincher — que o primeiro-ministro do Reino Unido nomeou para a direção da bancada parlamentar conservadora, em fevereiro último, apesar de alertado para o seu comportamento de predador sexual — e as mentiras e contradições de Downing Street a esse respeito parecem ser a gota de água que põe fim à tolerância de que Johnson longamente beneficiou.
Pincher demitiu-se de vice-presidente do grupo parlamentar no dia 30, após uma noite em que, ébrio, terá apalpado dois homens numa festa num clube privado. Foi convidado a sair, segundo o relato do próprio.
“Andar na corda bamba entre lealdade e integridade tornou-se impossível nos últimos meses”, afirmou esta quarta-feira, na Câmara dos Comuns, o deputado Sajid Javid, um dia depois de se demitir de ministro da Saúde, a par do titular das Finanças, Rishi Sunak.
Outros ministros juraram fidelidade a Johnson, mas houve silêncios significativos, como o de Michael Gove, titular da pasta da Habitação e Nível de Vida. O tabloide “Daily Mail” escreve que terá aconselhado o primeiro-ministro a demitir-se, e o gabinete do ministro não quis desmentir. O certo é que Gove não compareceu ao debate semanal nem falou em público. Tem uma relação de amor-ódio com Johnson: estiveram juntos na campanha do referendo do ‘Brexit’, em 2016, mas logo a seguir Gove, que era diretor de campanha de Johnson na corrida à liderança, fintou-o e concorreu em nome próprio, dizendo que o companheiro não tinha qualidades para governar o país. Muitos afirmariam agora que foi clarividente.
Javid foi um de vários governantes induzidos em erro pelo gabinete do primeiro-ministro, que defenderam Johnson perante as câmaras para depois se verem desmentidos pela realidade.
Javid recordou esta quarta-feira, no Parlamento, que durante o escândalo das festas ilegais em Downing Street lhe foram dadas garantias pessoais de que estas nunca tinham acontecido, informação falsa que repetiu em entrevistas televisivas. “O problema começa no topo e isso não vai mudar. E isso significa que cabe aos que estamos em posições de responsabilidade fazer a mudança acontecer”, concluiu. Afirma ter dado hipóteses várias ao primeiro-ministro, mas agora “basta”.
Alguns dos vários membros do Governo que se demitiram entre terça e quarta-feira queixaram-se do mesmo. Defenderam em público o chefe com base em mentiras. “Há um limite para o número de vezes que se pode desligar e ligar uma máquina até percebermos que algo está fundamentalmente errado”, ilustrou Javid. A seu ver, o atual primeiro-ministro vai causar danos duradouros à reputação do Partido Conservador.
Visita a Downing Street
É com essa preocupação em mente que uma delegação de deputados se prepara para visitar Johnson esta tarde e dizer-lhe que o seu tempo chegou ao fim. Fazem parte do Comité 1922, um órgão assim batizado por ter sido criado por parlamentares eleitos nesse ano, e que reúne deputados sem funções governativas. Entre as suas funções está a coordenação de eleições para a chefia do partido e moções de censura internas.
No passado dia 5 de junho, Johnson sobreviveu a uma moção de censura, ainda que com um terço da bancada a votar pela sua exoneração (211-148). Em princípio tal procedimento só poderia repetir-se após um ano, mas o jornalista James Forsyth, da revista conservadora “The Spectator”, cita na rede social Twitter um membro do Comité 1922, segundo o qual a delegação comunicará ao chefe do Executivo que caso não saia pelo seu pé, haverá uma mudança de regras para encurtar os prazos. É quase certo que Johnson seria destituído.
O tabloide “Daily Mail” adianta, através do jornalista Jason Groves, que o Comité 1922 está mesmo a preparar um calendário provisório para uma eleição interna. Se Johnson for apeado esta semana, segunda-feira começa a campanha pela sua sucessão. Isso permitiria concluir antes das férias de verão a primeira fase da corrida ao cargo, em que os deputados reduzem o lote de candidato que surjam a apenas dois, em votações sucessivas com eliminação dos menos votados. Depois cabe a todos os militantes do Partido Conservador eleger o chefe de entre aquele par.
Se Johnson se alapar ao lugar, admite a “Bloomberg”, o Comité 1922 alterará as suas regras e a moção de censura acontecerá na próxima semana. O próprio comité está na iminência de eleger uma direção, e as previsões favorecem uma lista anti-Johnson. Mas dada a gravidade dos acontecimentos dos últimos dias, pode nem ser preciso: a atual direção está disponível.
Tudo dependerá da capacidade de persuasão de Graham Brady, presidente do Comité 1922, caso decida ir a Downing Street comunicar a Johnson que já não goza do apoio da maioria do grupo parlamentar. Há três anos esse recado foi dado a Theresa May, que também estava no período teórico de um ano sem moções de censura. A diferença é que então estavam em causa divergências políticas sobre a saída da União Europeia. Agora trata-se de ética e integridade.
“Alguma circunstância o faria demitir-se?”
A intervenção de Sajid Javid no Parlamento aconteceu após o debate semanal com o primeiro-ministro, que foi uma meia hora de tortura mediática e política para Johnson. Três deputados conservadores pediram a palavra para lhe apontar a porta de saída, tendo um deles, Gary Sambrook, contado que o chefe do Governo ainda tentara responsabilizar pela situação as pessoas que, estando no local onde Chris Pincher cometeu as mais recentes agressões sexuais, não o travaram. Outro, Tim Houghton perguntou ao primeiro-ministro se haveria alguma circunstância imaginável que o levasse a contemplar a renúncia ao cargo.
Johnson escudou-se nas armas que o Reino Unido tem mandado para a Ucrânia e nos planos que afirma ter para o país. Isso levou outro deputado, Alex Shelbrooke, a gritar “os tomates!”, fazendo um gesto de decapitação, segundo a editora de política do diário “The Telegraph”, considerado próximo do primeiro-ministro, antigo colunista da publicação.
A oposição não poupou o governante e a sua equipa. O chefe do Partido Trabalhista responsabilizou Johnson pela promoção de Pincher a um cargo de poder quanto estava ciente dos seus atos. O governante respondeu que Pincher já não ocupava esse cargo, esquecendo o resto da questão e omitindo que ele próprio resistiu, de início, em depor o agressor sexual. E não desmentiu a afirmação de Keir Starmer de que até fizera piadas com o apelido do deputado caído em desgraça, que em tradução literal para português significa “beliscador”.
Starmer também culpou o resto do Executivo por manter o primeiro-ministro em funções, chamando-lhes “elenco de série Z de cães que acenam com a cabeça”. Johnson, à falta de argumentos, retorquiu com a invocação do antigo líder trabalhista Jeremy Corbyn e com a oposição do partido ao ‘Brexit’. Mais tarde, o seu gabinete fez saber que o primeiro-ministro está convicto de que goza do apoio dos deputados conservadores e que, caso haja moção de censura, estará lá para lhe fazer frente, embora a votação de junho tenha sido “clara e decisiva”.
Chuva de demissões
O certo é que as demissões de membros do Executivo ou de deputados com funções de articulação com ministros continuaram em catadupa, antes e depois do debate parlamentar. Terça-feira demitiram-se o ministro das Finanças, Rishi Sunak, e o da Saúde, Sajid Javid.
Além deles, abandonaram os cargos o vice-presidente do Partido Conservador, Bim Afolami, durante um insólito direto televisivo; os enviados comerciais a Marrocos e ao Quénia, Andrew Murrisson e Theo Clarke; o solicitador-geral, Alex Clark; e os deputados Saqib Bhatti, Jonathan Gullis, Virgínia Crosbie e Nicola Richards, respetivamente responsáveis por dar assistência aos ministros da Saúde, Irlanda do Norte, País de Gales e Transportes na relação com Westminster.
Já esta quarta-feira atiraram a toalha os secretários de Estado das Crianças e Família, William Quince; das Escolas, Robin Walker; da Energia e Indústria, Felicity Buchan; do Tesouro, John Glen; da Justiça, Victoria Atkins; da Inovação Agrícola e Adaptação Climática, Jo Churchill; da Habitação, Stuart Andrew; da Administração Local, Kemi Badenoch; da Infraestrutura Digital, Julia Lopez; e das Exportações, Mike Freer.
Demitiram-se ainda deputados que articulam com o Executivo: Laura Trott (Transportes), Selaine Saxby (Ambiente), Claire Coutinho (Tesouro), David Johnson (Educação), Mims Davies (Emprego), Neil O’Brien e Duncan Baker (Nível de Vida), Alex Burghart (Qualificação), Lee Rowley (Economia), Craig Williams (Finanças), Mark Logan (Irlanda do Norte) e Rachel Maclean (Proteção Civil).
Todos os que têm deixado os cargos permanecem como deputados. O motivo invocado é sempre o mesmo: a permanência de Boris Johnson prejudica a imagem e o funcionamento do Governo e do país. “Confiança”, “verdade” e “integridade”, “decência”, “respeito” e “profissionalismo” são valores em falta, alegam. Queixam-se de ter sido deixados a “defender o indefensável” por um líder “jocoso e egoísta” que está em posição “insustentável”.
Ao mesmo tempo que o gota a gota de demissões ia agravando a sensação de naufrágio, dezenas de parlamentares tories emitiam comunicados a pedir a Johnson que tomasse a decisão certa, a de sair. Alguns tinham votado a favor do primeiro-ministro na moção de censura do mês passado. A reação deste último está patente na resposta que deu a um deles, David Davis, ex-ministro do Brexit e outrora seu aliado: “Não podia discordar mais”.