Internacional

Plano de Boris Johnson para deportar imigrantes para o Ruanda ensombra cimeira da Commonwealth em Kigali

Primeiro-ministro aproveitará encontro para abordar assunto com o príncipe Carlos, que em privado considerou a ideia “horrível”. Tribunal Europeu dos Direitos Humanos bloqueou primeiro voo agendado, mas o Executivo de Johnson promete ignorar futuros obstáculos vindos dali. Também há boas notícias para a organização: Gabão e Togo pediram a adesão, apesar de não terem sido colónias britÂnicas

No Ruanda para a cimeira da Commonwealth, o príncipe Carlos visitou um memorial às vítimas do genocídio de 1994
Chris Jackson/Getty Images

Os chefes de Estado e Governo da Commonwealth reúnem-se esta semana em Kigali, capital do Ruanda. Na agenda estão a crise económica global, as alterações climáticas, a sustentabilidade da dívida de vários estados-membros e o acesso ao financiamento, entre outros temas. A cimeira tem sido adiada desde 2020, por causa da covid-19, e arranca com uma boa notícia para a organização criada após o desmembramento do Império britânico: aos atuais 54 estados que representam todos os continentes do planeta juntar-se-ão, em breve, o Togo e o Gabão.

As duas nações africanas não foram colónias do Reino Unido (os gaboneses estiveram sob tutela francesa, os togoleses sob tutela alemã), mas decidiram aderir à Commonwealth por terem laços culturais, económicos e outros com o país. O mesmo sucedeu em 2009 com o francófono Ruanda, anfitrião da presente reunião, e em 1995 com o lusófono Moçambique, nenhum dos quais pertenceu ao Império onde o sol não se punha.

A chefe da Commonwealth, Isabel II ­— soberana do Reino Unido e de outros 14 estados-membros —, não irá a Kigali, fazendo-se representar pelo filho e presumível sucessor Carlos. Este herdará também o cargo da mãe na organização, processo que não é automático mas que os 54 países implicados decidiram em 2018, por sugestão da rainha, hoje com 96 anos.

Juízes impedem primeiras deportações

A chegada de Boris Johnson ao Ruanda, esta quinta-feira, põe em destaque um dos dossiês mais polémicos da cimeira, apesar de não fazer parte da agenda oficial: o plano do Governo britânico para deportar imigrantes para solo ruandês, ao abrigo de um acordo com o Governo local, enquanto decorre o seu processo de candidatura a asilo no Reino Unido.

O príncipe criticou a ideia em privado, chamando-lhe “horrorosa” e declarando-se “mais do que desapontado”, como noticiou sem desmentido o diário “The Telegraph”, próximo da família real. Autoridades religiosas anglicanas como o arcebispo de Cantuária — mais alta figura da Igreja de Inglaterra a seguir a Isabel II — consideraram-na desumana.

Na semana passada, o primeiro voo fretado para levar imigrantes do Reino Unido para o Ruanda foi travado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, tendo aceitado a providência cautelar pedida por um dos potenciais deportados. Trata-se de um iraquiano que chegou às ilhas britânicas de barco, há menos de um mês, alegando perigo de vida no seu país de origem.

Um chá com o herdeiro da Coroa

Johnson terá uma “discussão bilateral” com o prícipe de Gales sobre esta controvérsia, em Kigali. Carlos chegou antes do primeiro-ministro e não falou do assunto, tendo dedicado o primeiro dia a homenagear as vítimas do genocídio ruandês de 1994. Como herdeiro do trono, manda o protocolo que não se pronuncie sobre assuntos politicos, pelo menos em público. Já em encontros privados com dirigentes de países asiáticos, africanos e caribenhos, é difícil saber.

Carlos não irá visitar o centro ruandês de acolhimento a migrantes, o que poderia ser visto como expressão pública do seu desagrado. Johnson tampouco o fará, citando incompatibilidades de agenda. “Pensamos que o seu tempo será mais bem usado, nesta curta estada no Ruanda, dedicando-se a alguns dos assuntos que serão suscitados na cimeira”, afirmou um porta-voz de Downing Street.

“The Telegraph” escreve que Johnson irá dizer ao futuro rei, com quem tomará chá, que está “orgulhoso” do plano de deportações. “Penso que é uma política sensata e um plano para lidar com os grotescos maus-tratos a pessoas inocentes que atravessam o canal da Mancha”, afirmou a jornalistas quando lhe perguntaram se repudiava as críticas do príncipe (que o primeiro-ministro diz não saber se foram mesmo feitas). A propaganda do Governo insiste que expulsar imigrantes para o Ruanda enquanto se tramita a sua candidatura a asilo é uma forma de protegê-los das redes de narcotráficos, via dissuasão. O esquema inclui pagamentos de milhões ao Ruanda, cujo total não foi revelado.

Em reação à decisão judicial desfavorável, o Governo do Reino Unido admitiu abandonar a jurisdição do Tribunal Europeu (que não é um órgão da União Europeia, de que o país deixou de fazer parte em 2020). O ministro da Justiça, Dominic Raab, anunciou uma nova Carta de Direitos britânica que lhe permitiria ignorar os juízes europeus.

Secretária-geral criticada

Outra sombra paira sobre a reunião. A secretária-geral da Commonwealth, Patricia Scotland, membro trabalhista da Câmara dos Lordes britânica, foi acusada de ocultar um relatório independente que critica a sua prestação no cargo, nomeadamente a nível financeiro, com alegações de “ambiente tóxico” e violação de regras de contratação. Saberá durante a reunião de Kigali se é reeleita. Johnson deseja que não o seja, tendo o Reino Unido e outros seis países declarado apoio à ministra dos Negócios Estrangeiros da Jamaica, Kamina Johnson Smith.

O presidente do Conselho de Governadores da Commonwealth, Kevin Isaac, escreveu uma carta aos seus 53 homólogos em que defende que é “uma afronta” Scotland tentar suprimir o relatório em causa, que se negou a partilhar com os governadores. Ocupa o cargo há seis anos, embora o mandato seja de quatro, devido aos adiamentos da reunião por motivos sanitários.