Com a inflação nos 7,5%, a principal preocupação dos americanos é, precisamente, o aumento do preço de bens essenciais. Um galão de gasolina (3,78 litros) ronda em média os quatro dólares (em estados como a Califórnia supera os cinco, quase o dobro de há um ano), um choque para uma população que, por exemplo, venera pickups – a Ford F-150, capaz de consumir até 16 litros aos 100, permanece como o veículo mais vendido no país.
No discurso do estado da União desta noite (madrugada de quarta-feira em Lisboa), o Presidente dos EUA, Joe Biden, concentrou-se na solução do problema, apesar do momento crítico na Europa, devido à invasão russa da Ucrânia. “Não tem alternativa. Se a Economia não melhorar, temo que o segundo mandato se torne uma miragem”, afirmou ao Expresso Jerry Crawford, diretor de campanha da democrata Hillary Clinton, nas eleições presidenciais de 2016.
As sondagens reforçam esse receio. A última delas, publicada pelas estações públicas de rádio e de televisão (NPR e PBS, respetivamente), na semana passada, revelou uma taxa de popularidade de 39%, uma queda de 15% em relação ao pico registado em abril.
O mesmo estudo confirmou que a política internacional não é prioritária para os americanos. Apenas 10% considera-a relevante para o seu dia a dia.
Mesmo assim, as primeiras palavras de Biden ontem à noite destinaram-se ao povo ucraniano, que à mesma hora permanecia alvo de bombardeamentos. A embaixadora de Kiev em Washington, Oksana Markarova, foi uma das convidadas de honra da primeira-dama, Jill Biden.
“Ao longo da História aprendemos que quando os ditadores não pagam um preço pelas suas agressões continuam a provocar o caos”, lembrou Joe Biden. “Eles continuam. E os custos para a América e para o resto do mundo aumentam. Foi por isso que a NATO nasceu, com o objetivo de assegurar a paz e a estabilidade na Europa depois da Segunda Guerra Mundial”. Após uma breve pausa, o chefe de Estado denunciou a “premeditada guerra de Putin” e deixou um aviso: “Ele pensava que o Ocidente e a NATO não responderiam. Ele pensava que nos conseguiria dividir internamente. Putin estava errado e hoje está mais isolado do que nunca. Estamos preparados”.
A Câmara apreciou o tom e aplaudiu em conjunto, principalmente quando ouviu detalhes sobre as sanções económicas e o anúncio do encerramento do espaço aéreo à aviação russa, seguindo o exemplo da União Europeia. Mesmo perante a gafe da noite, quando Biden referiu-se aos ucranianos como “iranianos”, o espírito manteve-se.
“Nunca vi este grau de unidade. O Congresso é um lugar partido, polarizado depois da invasão de 6 de janeiro de 2021. Putin conseguiu unir democratas e republicanos em torno da causa ucraniana”, adiantou ao Expresso Patrick Malone, diretor de comunicações do congressista Jim Himes. “Basta andar nestes corredores para se perceber que todas as pessoas, independentemente do seu partido, perguntam o que podem fazer para ajudar”.
“Made in America”
Apesar da introdução, o inquilino principal da Casa Branca resistiu à tentação de converter o discurso do estado da União numa dissertação sobre política externa.
Ao invés, concentrou-se no tal problema económico, destacando o crescimento, o mais alto dos últimos 40 anos, e as suas propostas tendo em vista a redução do custo de vida.
Apresentou, por isso, um pequeno plano, “uma agenda de unidade”, que inclui, por exemplo, o incremento da produção interna, ou seja, um reforço do “Made in America”. “Quando gastamos o dinheiro do contribuinte, tal deve servir para apoiar os trabalhadores e os negócios americanos”, destacou.
Recorde-se que quando Biden tomou posse, a 20 de janeiro de 2021, assinou um despacho executivo para “assegurar que o futuro é feito na América e pelos trabalhadores americanos”, uma frase repetida ontem para gáudio da bancada democrata e até de uma minoria de republicanos, que gritaram: “USA!USA!”
Longe de propor um novo projeto económico, fruto da alteração do quadro pandémico, Biden recordou o que foi aprovado, nomeadamente o plano de infraestruturas no valor de um bilião de dólares (900 mil milhões de euros), que servirá, entre outras coisas, para reparar mais de 100 mil quilómetros de estrada e 1500 pontes. “Éramos a inveja do mundo, agora somos o décimo terceiro classificado na lista de países com melhores infraestruturas”. O chefe de Estado garantiu que este passo será essencial para os EUA tornarem-se competitivos, principalmente com a China.
No capítulo do sector privado, elogiou a iniciativa de empresas como a Intel que, só no Ohio, investirá mais de 20 mil milhões de dólares (18 mil milhões de euros) na produção de semicondutores. O ordenado médio anual dos trabalhadores nas fábricas que nascerão nos arredores da cidade de Colombus irá cifrar-se nos 135 mil dólares (121 mil euros).
O líder americano acenou, ainda, com o desmembramento da legislação “build back batter” – pacote de reformas económicas destinadas a auxiliar a classe média, reduzir as desigualdades massivas de rendimento e combater as alterações climáticas -, cuja aprovação na totalidade parece impossível.
O aumento do ordenado mínimo federal para 15 dólares à hora voltou a ser exigido, assim como o corte nas despesas com a Educação pré-escolar, cuja mensalidade ronda por norma os dois mil dólares mensais (1800 euros). “Peço ao Congresso que me envie uma proposta de lei que diminua o custo de vida, assim como o défice. As famílias americanas precisam de um alívio imediato”.
Ao Expresso, o ex-congressista democrata Bakari Sellers contextualizou as palavras de Biden. “Ao ouvirmos o Presidente, temos de ter em conta que ele passou o último ano a lutar contra os efeitos devastadores da pandemia, enquanto reconstruiu a Economia e acabou com as políticas danosas implementadas por Donald Trump”.
Pandemia?
Com a Economia e a invasão da Ucrânia no topo da agenda, de repente parece que a pandemia terminou. A tal sondagem da NPR confirmou isso mesmo, com apenas 8% dos americanos a considerarem a crise de saúde pública como uma “grande preocupação”.
Os EUA são o país com o maior número de mortes por covid-19 – 940 mil. Mesmo assim, apenas 65% da população está vacinada. Com a queda do número de casos, após o crescimento exponencial provocado pela variante Omicron, sente-se que o pior terá passado.
A apresentação dos certificados de vacinação já não é obrigatória, assim como o uso de máscara em grande parte das escolas. Ontem à noite, a esmagadora maioria dos presentes no Congresso tinha a cara destapada, uma imagem que contrasta com a realidade de há um ano.
Um punhado deles, todos conservadores diga-se, recusaram, no entanto, comparecer, devido à obrigatoriedade de testagem até 24 horas antes do evento. “Não tenho tempo”, disse ontem o senador republicano Marco Rubio ao canal televisivo ABC. “Pensava que tal só era necessário caso me sentisse doente, o que não é o caso”. De imediato, o colega de partido Chip Roy, representante do Texas, tuitou o seguinte: “Não diria melhor. Também não irei”.
Note-se que, a partir de ontem, a própria Casa Branca deixou de exigir que trabalhadores e visitantes vacinados tragam máscara. Biden recordou a tendência positiva. “Urge regressarmos à normalidade. Este vírus viverá connosco, mas deixou de controlar as nossas vidas. Temos de nos habituar a uma nova realidade. Desde que acreditemos nos avanços da ciência, nada teremos a recear”. Seguiu-se um aplauso generalizado, o segundo da noite.
Biden fechou a noite, insistindo na reforma do sistema eleitoral, na defesa do direito ao aborto, no combate à criminalidade por via da restrição do acesso às armas e na urgência de converter o cancro numa doença totalmente curável. “Nunca estive tão otimista quanto ao futuro da América”, confessou. “A nossa nação define-se por uma palavra: possibilidade. Este é o nosso momento”.
A senadora republicana Kim Reynolds protagonizou este ano a resposta oficial da oposição ao discurso do Presidente dos EUA. Esta americana do midwest (Illinois), fã acérrima de Donald Trump, tornou-se uma celebridade da direita durante a pandemia. Liderou os protestos contra o uso de máscara, certificados de vacina e ensino virtual, acusando o Governo de ir além do admissível nas políticas de combate à covid-19.
Por volta das 22h30 locais (3h30 em Lisboa) tomou a palavra. “As pessoas que assistiram a este discurso devem fazer duas perguntas: vivo melhor hoje sob comando deste Presidente e do seu Partido? Devo acreditar numa palavra do que foi dito esta noite? Não. Um ano depois deste Presidente assumir o poder, abateu-se uma crise no estado da União. Os preços da energia e da alimentação tornaram-se escandalosos”.
Nem o anúncio da nomeação de Ketanji Brown Jackson para o Supremo Tribunal americano, que, a confirmar-se após votação no senado agendada para abril, ditará a entrada da primeira negra na mais alta instância judicial do país, agradou a Reynolds. “Uma radical de esquerda, cuja escolha revela, mais uma vez, o caráter extremo desta Administração”.