Internacional

Países europeus mais próximos da Ucrânia preparam-se para receber centenas de milhares refugiados de guerra. ONG polacas falam em “dois pesos e duas medidas no acolhimento”

Os países mais próximos da Europa estão a preparar soluções para uma potencial fuga de milhares de ucranianos – um número que pode atingir milhões, segundo as previsões de alguns governos. A vontade de receber estes “refugiados de verdade” parece unânime, mesmo entre os países que vêm recusando, há anos, a entrada de sírios, iraquianos, marroquinos e tantas outras nacionalidades que têm recorrido à União Europeia à procura de ajuda

Um abrigo anti-aéreo construido em 2014, no início da guerra em Donbas. Muitos ucranianos regressaram recentemente aos “bunkers” para verificar se têm condições para servirem de abrigo e novo FOTO: Yves Choquette/ Getty Images

A Ucrânia já tem acesso, sem necessidade de visto, aos países do Espaço Schengen. Aqueles que estão mais próximos, como a Polónia, Hungria, Eslováquia e a República Checa, já tentam antecipar a possível entrada de refugiados de guerra, um grupo de pessoas com necessidades bem diferentes das de um imigrante que procure um destino europeu onde possa circular sem visto para procurar emprego melhor. 

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados afirmou na terça-feira que não tem dados que permitam dizer que já existe um fluxo de pessoas a sair da Ucrânia, mas avisou que a situação é “muito volátil”. A Europa Central é destino natural para qualquer ucraniano, muitos têm famílias na Polónia e noutros países próximos, outros deslocam-se com frequência para estudar ou trabalhar. 

Desde o início da guerra em Donbas, mais de 1,5 milhões de pessoas tornaram-se refugiados internos. Apesar de não terem estatuto de refugiado nos países vizinhos, observadores destes movimentos estimam que possam ter entrado por razões humanitárias, mas sem procurar estatuto especial. 

Habitantes das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Luhansk saem dos enclaves em direção à Rússia, depois de os líderes da “repúblicas” terem dito que um ataque iminente das forças ucranianas poderia pôr em causa a sua segurança FOTO: Maxim Romanov/Anadolu Agency/ Getty Images)

Especialistas em recrutamento na Polónia comentaram à Al Jazeera que já há sinais de que a imigração começa a aumentar, o que já se verificara após a anexação da Crimeia em 2014. Em 2015, o número de ucranianos que chegaram para trabalhar no país saltou de cerca de 200 mil para mais de 800 mil. Neste momento, o número de ucranianos que vivem e trabalham neste país está perto dos dois milhões, segundo análise do centro de estudos sociológicos RAND. Observou-se uma tendência semelhante na República Checa, onde os ucranianos são a maior minoria nacional, com mais de 130 mil membros. Os dados mostram que os pedidos de residência de longo prazo aumentaram pelo menos 65% em 2015. 

Se na Polónia este influxo é esperado — o secretário de Estado do Interior, Maciej Wąsik, disse à rádio pública polaca que o Governo está a trabalhar com valores de perto de um milhão —, também o ministro da Defesa eslovaco, Jaro Nad, disse à Al Jazeera que o país está a preparar-se “para que grande número de refugiados chegue da Ucrânia”. 

O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que, tal como os outros países nesta lista, não tem uma abordagem aberta ao acolhimento de grandes números de novos residentes, alertou que “milhares” podem chegar, mas o seu Governo declara-se pronto a receber os que forem “requerentes de asilo”. E podem mesmo ser milhões. O ministro da Defesa da Ucrânia estimou que uma invasão violenta possa levar 3 a 5 milhões de ucranianos a fugirem dos campos de batalha. 

O Governo dos Estados Unidos também calcula o máximo de entradas nos 5 milhões, número que pode não ser constituído apenas por pessoas em situação de pobreza extrema. Serão, ainda assim, pessoas que precisam de sítio onde ficar. “Não é exagero imaginar cidades e vilas rurais no oeste da Ucrânia e no leste da Polónia, de repente, com necessidade de lidar com centenas de milhares de pessoas, a sua saúde, alimentação, estadia, educação, segurança e outras necessidades imediatas”, escreveram, também para o centro de análise social RAND, Shelly Culbertson, especialista em Desenvolvimento Internacional, e Charles Ries, especialista em Relações Internacionais.

Como alertam os dois académicos, “a crise migratória de 2015 teve efeitos significativos na política europeia e ilustrou potenciais riscos . Partidos de extrema-direita na Alemanha, Áustria, França e outros lugares floresceram. Sondagens mostraram que a imigração foi a questão mais importante para os eleitores do Leave no referendo britânico de 2016 sobre a UE, sendo os fluxos de refugiados evidentes na Europa uma questão particularmente quente”. Já  Luigi Scazzieri, do Centre for European Reform, com sede em Londres, disse ao canal NBC, nos Estados Unidos, que “uma pequena incursão não criaria um grande fluxo de refugiados”, cenário que muda se houver invasão de mais território ucraniano. “Em termos de escala, pode ser semelhante a 2015, simplesmente ainda não sabemos o que a Rússia fará nesta fase”.

Uma família síria fotograda na ilha de Cós, no mar Egeu, Grécia, em 2015, quando mais de um milhão de sírios chegaram à Europa FOTO: Dan Kitwood/Getty Images

As autoridades romenas também estão a ponderar o estabelecimento de infraestruturas ao longo da fronteira a norte e dos vizinhos mais próximos da Ucrânia. O ministro do Interior, Lucian Bode, disse à televisão B1 que o país está a preparar-se “para um cenário de entrada de centenas de milhares de refugiados de forma descontrolada”, acrescentando que as autoridades estão a analisar quantos campos de refugiados podem estabelecer em pouco tempo: “10,12, 24 horas”, disse Bode.

Até o Executivo checo — que chegou ao poder recentemente, montado numa retórica anticorrupção, associação direta com o ex-primeiro ministro Andrej Babis, aliado de Orbán, mas também deu espaço a ideias populistas a roçar a islamofobia — tem dito que vai aceitar ucranianos

É importante notar que os ucranianos já têm acesso sem visto a toda Schengen o que levanta um problema aos países que pensem não facilitar a entrada de pessoas que tenham de fugir do país, se isso chegar a ser cenário. Se, por exemplo, a Hungria decidisse que deseja impedir a entrada de ucranianos, seria preciso que estabelecesse um nível específico de controlos fronteiriços que agora não existem, além de que depressa seria confrontada com a discriminação que, entre liberdades de circulação no Espaço Schengen, não pode existir.

Regras diferentes para refugiados diferentes?

E, no entanto, não haver uma porta não quer dizer que não haja problemas. É fácil relembrar outros fluxos migratórios para a UE, não provenientes de países maioritariamente muçulmanos, nem sequer de fora do espaço europeu que causaram problemas políticos quando se tornaram demasiado “notórios”. A imigração legal de polacos para o Reino Unido, a partir de 2004, é um exemplo. O “canalizador polaco” tornou-se imagem nem sempre consciente de xenofobia, contribuindo para a polarização que foi tão clara no Brexit.

Algumas organizações não governamentais já disseram que há “refugiados de primeira e de segunda”. Se compararmos a possibilidade de êxodo de largos milhares de ucranianos com o que se passou na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia durante toda a segunda metade do ano passado, facilmente surgem dúvidas sobre as atitudes e retórica dos líderes da Europa Central, então e agora. 

Depois de o Presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, ter organizado todo um esquema de recrutamento de potenciais requerentes de asilo em alguns dos países mais problemáticos do Médio Oriente, de forma a pressionar a Europa e levando à morte de várias pessoas nas florestas geladas da Polónia, no final de janeiro, Varsóvia anunciou que começou a construir um muro de 353 milhões de euros ao longo da sua fronteira com a Bielorrússia. O objetivo é impedir que requerentes de asilo, maioritariamente sírios e iraquianos, muitos destes curdos, entrem no país.

Um homem manifesta-se contra o muro que a Polónia mandou construir na fronteira com a Bielorrússia, para impedir a passagem de migrantes. A parede tem 5.5 metros e a primeira parte estende-se por 186 quilómetros FOTO: Beata Zawrzel/NurPhoto/Getty Images

A Fundação Ocalenie, que apoia refugiados na Polónia, elogiou o compromisso do Governo com os ucranianos, mas denunciou o que considera ser “dois pesos e duas medidas no acolhimento”. “Perguntamo-nos porque não houve movimento equivalente durante a crise na fronteira. Mostra uma tendência geral de que na Polónia alguns requerentes de asilo são favorecidos em detrimento de outros”, disse um membro da associação ao diário “The Guardian”.

Também a Grupa Granica, outra rede de apoio a pessoas em trânsito, veio criticar as diferenças na abordagem. “Durante meio ano, o mesmo Governo empurrou violentamente pessoas de muitos outros países que tentavam atravessar a fronteira bielorrussa. É racista diferenciar as pessoas e o seu acesso aos procedimentos básicos de migração com base no país de origem. Porque não têm todos acesso ao mesmo tratamento?”, perguntou a associação através de um comunicado publicado pela imprensa polaca.

Mas o secretário de Estado do Interior não se furtou a explicações. Wąsik descreveu os ucranianos como “refugiados de verdade”, que precisam de ajuda, e acrescentou que seu Governo vai cumprir “as convenções de Genebra”, referência ao documento onde estão expressos os direitos de refugiados e outros grupos de pessoas vulneráveis. A ajuda a ser preparada na Polónia é abrangente. O Ministério da Família e Política Social prometeu que os refugiados ucranianos receberão pensão de alimentos e assistência psicológica, segundo artigo recente da Deutsche Welle.

A grande maioria dos refugiados não volta para casa. Dez (10) anos após o fim de um conflito, menos de um terço dos refugiados regressam. Isso contribui para que, em todo o mundo, existam cerca de 82 milhões de pessoas deslocadas à força, tanto dentro dos seus países como em países vizinhos ou longínquos, por vezes hostis, um número que duplicou na última década.