A violência no Capitólio foi documentada – muito, muito documentada. Era o dia da certificação dos votos que finalmente viriam a confirmar Joe Biden como Presidente dos Estados Unidos, o dia em que Donald Trump, a tentar lidar com a derrota, convocou um comício para falar do que chamou “a grande mentira”, ou seja, a fraude eleitoral que ele culpa por essa derrota.
Não faltavam repórteres, e eles não eram os únicos munidos de todo o tipo de material capaz de captar som, imagens, vídeo; também os apoiantes de Trump estiveram sempre a transmitir, ao minuto e em direto, nas redes sociais, tudo o que se passou naquele dia. Filmaram-se a eles mesmos a cometer um crime: a invasão do mais importante edifício da democracia norte-americana, o local onde se reúnem os representantes do povo.
“Nunca iremos ceder. Nunca desistiremos e nunca recuaremos. Jamais nos iremos render”
Donald Trump, pouco depois de ter perdido a eleição mas ainda a exercer o cargo de Presidente
Mesmo antes de chegarem ao Capitólio, já havia matéria para análise criminal porque o plano do ataque ao Capitólio foi planeado, apesar de ter toda a aparência de espontaneidade. Mais de 23 milhões de norte-americanos viram tudo em direto, o evento foi o mais visto de sempre nos 40 anos de história da CNN, com uma média de 5.2 milhões de espectadores durante o dia. Muitos mais milhões seguiram emissões online, ou “streaming” em várias plataformas.
Como é que a invasão foi planeada?
Há analistas que veem as raízes desta invasão na própria eleição de Donald Trump e na progressiva radicalização do discurso político que ele passou a exercer e a permitir mas mesmo quem não vai tão longe não tem dúvidas que, desde que a teoria da “fraude imensa” começou a circular, mais ou menos em abril de 2020, o risco tornou-se bastante palpável.
Ali Alexander, um ativista de extrema direita e mestre das teorias da conspiração, publicou um vídeo no YouTube no dia 25 de dezembro de 2020, pedindo às pessoas que fossem a Washington no dia em que o Congresso finalizaria a eleição de Joe Biden. Sob uma banda sonora de filme de heróis, o vídeo mostra uma recente declaração de Trump: “Nunca iremos ceder. Nunca desistiremos e nunca recuaremos. Jamais nos iremos render”. Depois aparece o endereço de uma página – WildProtest.com – e Alexander pede a todos que se inscrevam para uma marcha até ao Capitólio, pelas 13h do dia 6 de janeiro.
Há muitos outros exemplos de que a invasão foi fruto de alguma premeditação. Apesar de várias empresas de monitorização de atividade na internet terem verificado discurso de incitação em redes sociais mais abrangentes como o Twitter ou o TikTok, os planos para a invasão de facto só foram realmente explícitos em fóruns e sites pró-Trump como o “TheDonald”, uma ramificação de uma corrente do site Reddit, entretanto banida, onde os usuários conversavam abertamente sobre as melhores formas de arrombar as portas de prédios federais ou sobre como enviar armas para a capital do país e, posteriormente, para dentro do espaço onde o comício de Trump estava marcado, no Elipse, a metros da Casa Branca. “ Invadimos o Capitólio”, respondeu um dos utilizadores a um outro que perguntava qual era o plano caso o Congresso decidisse “ignorar as provas” de fraude eleitoral (e por essa resposta foi presenteado com 500 “likes”).
Um outro participante partilhou um mapa com as ruas perto do Capitólio com a informação de quantos políticos estariam presentes e de quantos guardas seria preciso derrotar – os manifestantes previam ter de enfrentar cerca de 3500 agentes da autoridade mas, como depois de viu nas imagens do dia, esse número foi uma ficção.
Nas semanas e dias que antecederam o dia 6 de janeiro, uma série de hashtags indicava que violência poderia ocorrer no comício. Muitos utilizadores de múltiplas plataformas, usaram a palavra-chave #Jan6 próxima de outras como #wildprotest #fightback e #midnightride, de acordo com uma investigação da First Draft, uma empresa que analisa fluxos de desinformação na internet. Da mesma forma, uma outra empresa com finalidade semelhante, a Yonder, registou, nas plataformas que analisa (quase todas as redes sociais), quase 367,000 publicações com menções a “guerra civil”.
A organização sem fins lucrativos Advance Democracy apresentou um relatório onde mostra que a violência iminente foi sinalizada em todos os cantos da internet nos dias que antecederam o motim, com mais de 50% das principais publicações do “TheDonald” a 4 de janeiro focadas na certificação do Colégio Eleitoral. As cinco respostas com mais interação continham todas “apelos não moderados à violência”. A rede social associada com estes movimentos, a Parler, muito menos fiscalizada que o Twitter, apresentou uma tendência semelhante.
As conversas entre os membros desse site, agora fechado chegaram a níveis sanguinários, ou pelo menos o desejo por ações violentas ficou perfeitamente claro: os participantes discutiram coisas como construção de forcas, que tipo de corda se deveria usar, ou o quão fácil seria levar uma lâmina de guilhotina para Washington, de acordo com uma análise do “Washington Post” ao conteúdo da página.
O que se sabe sobre as sentenças
A identificação dos invasores não foi difícil, mais de 150 pessoas foram a tribunal dizer que eram culpadas daquilo que eram acusadas mas as penas efetivas são poucas. Uma análise da base de dados construída pelo “Politico” mostra que os juízes têm sido cautelosos ao impor longas penas de prisão, exceto quando se registaram atos de violência, ou a ameaça dessa violência. Mais de metade dos réus que se confessaram culpados ainda aguardam sentença.
Mais de 700 pessoas foram presas por crimes ligados ao ataque ao Capitólio e agora que se assinala um ano desde esse dia, só um décimo, 71 pessoas, receberam uma sentença e, dessas, apenas 30 vão cumprir tempo na prisão. Isto é porque muitos dos condenados até agora foram apenas condenados por entrar ilegalmente no prédio do Capitólio e não estiveram envolvidos nos atos mais violentos. Até ao final do ano, apenas sete pessoas foram condenados por crimes graves.
Os procuradores, publicamente, têm usado palavras fortes para criticar a invasão e os seus perpetradores mas depois acabam por dar luz verde a acordos com os acusados que são demasiado lenientes, o que faz a classe parecer “quase esquizofrénica”, disse ao “Politico” a juiza Baryl Howell, de Washington, dada a lacuna entre as declarações públicas e as sentenças que têm negociado.
“O governo esteve em agonia naquele dia, as consequências têm de pesar no balanço da sentença”, disse, ao mesmo jornal“
Royce Lamberth, juiz de Washington
“Os desordeiros que atacaram o Capitólio em 6 de janeiro não foram meros manifestantes envolvidos num ato de liberdade de protesto protegido pela Primeira Emenda”, disse Howell durante a sentença de Jack Griffith, do Tennessee, que recebeu três anos de liberdade condicional. “Não eram apenas insurretos, há inúmeros vídeos que mostram que a multidão que atacou o Capitol era violenta. Todos os participantes contribuíram para a violência”.
“O governo esteve em agonia naquele dia, as consequências têm de pesar no balanço da sentença”, disse, ao mesmo jornal, o juiz Royce Lamberth, durante a audiência de Frank Scavo, um dos invasores, condenado a 60 dias em novembro – ou seja, deve ser libertado ainda em janeiro desde ano.
As sentenças mais longas
A maior pena – por mais de um ano meio – é a Robert Palmer que foi condenado a mais de cinco ano de prisão (63 meses) depois de ter admitido que tentou agredir um polícia com um bastão. Palmar também atirou uma placa de madeira e um extintor para cima de um outro grupo de polícias. As agressões à autoridade são de longe as mais penalizadoras para os invasores.
Três outros receberam sentenças de prisão superiores a 40 meses, dois dos quais – Devlyn Thompson e Scott Fairlamb – também admitiram ter agredido polícias. Jacob Chansley, que não se envolveu mas “impediu atos oficiais”, também foi condenado a 41 meses. Cleveland Meredith foi condenado a 28 meses por ameaças à polícia, tal como Troy Smocks (14 meses de prisão).
Os juízes podem impor sentenças maiores do que as recomendadas pelos procuradores, mas estes casos são raros. Têm sido particularmente raros na condenação dos invasores do Capitólio, como vimos acima pelo número de pessoas identificadas contra o número dos que realmente receberam qualquer sentença.
Uma juíza, porém, tem optado por não aceitar a recomendação dos procuradores, decidindo, em vez disso, por penas mais pesadas. O seu nome é Tanya Chutkan. “Tem de haver consequências por participar em tentativas violentas de derrubar o governo e têm de ser mais graves do ficar em casa sentado no sofá”, disse Chutkan durante a sentença de 45 dias que decidiu impor a um dos invasores, para quem os procuradores pediam apenas três meses de prisão domiciliária. “O país está a observar-nos para ver que consequências existem para uma coisa que nunca aconteceu na história deste país”.
Atenção: Estes invasores não vêm das franjas
A iconografia que se viu naquele dia no Capitólio não deixa muitas dúvidas: a maioria dos símbolos, em bandeiras ou t-shirts, está associada a grupos extremistas, a maioria à extrema-direita. Desde bandeiras da Confederação a símbolos de várias milícias que defendem a supremacia branca, o extremismo ficou claro.
Mas os estudos académicos realizados entretanto mostram que a maioria dos participantes são eleitores “normais” de Donald Trump, é mesmo esta a palavra usada por Robert Pape, professor de ciência política da Universidade de Chicago no seu trabalho para a “Atlantic” sobre por que é que os extremistas do Capitólio não são como os outros.
A equipa de Pape analisou quase tudo sobre os casos que chegaram a tribunal (193): acusação, documentos de fundamentação dos procuradores, ligações das pessoas identificadas a qualquer grupo extremista, na atualidade ou no passado, cadastro, tudo o que estava escrito nos documentos do tribunal.
Em primeiro lugar, o que descobriram foi que o ataque ao Capitólio foi inequivocamente um acto de violência política, não apenas um exercício de vandalismo ou invasão, um protesto que se descontrolou. De forma esmagadora, a razão apresentada para a participação na invasão foi esta: impedir o Congresso de certificar Joe Biden como o vencedor da eleição presidencial. Dezenas de réus, indicam os registros do tribunal, fizeram declarações explicando as suas intenções, em detalhe, nas redes sociais ou em entrevistas com o FBI. “Estou incrivelmente orgulhoso de ser um patriota hoje”, escreveu um homem de 37 anos de Beverly Hills, Califórnia, “por me erguer em defesa da liberdade e da Constituição, apoiar Trump e #MAGAforever, NUNCA VAMOS CONCEDER UMA ELEIÇÃO ROUBADA”
Em segundo lugar, a grande maioria dos suspeitos no motim do Capitólio não tem ligações à extrema direita nem a milícias nacionalistas ou supremacistas. O professor Pape contou como “pessoa ligada a movimentos extremistas” qualquer pessoa que tenha sido referida como tal num documento judicial, num artigo noticioso, em qualquer rede social e até qualquer indivíduo com roupas que pudessem indicar apoio a algum grupo extremista e mesmo assim só 20 das pessoas que chegaram a julgamento puderam ser assim classificadas. Ou seja, apenas um décimo dos mais de 190 réus tinham alguma ligação a grupos como os “Proud Boys”, “Oath Keepers” e “Three Percenters”. O papel que esses grupos desempenharam no motim é real, mas 89% das pessoas julgadas por algum crime relacionado com a invasão não têm afiliação aparente com nenhuma organização extremista conhecida.
E, para finalizar o perfil: as pessoas que participaram na insurreição de 6 de janeiro tem muito a perder: são advogados, médicos, comerciantes, contabilistas, profissionais de tecnologias de informação, professores, e até diretores-executivos de empresas, o que os distingue bastante dos “antigos” extremistas. Cerca de 40% são proprietários de empresas ou têm empregos de colarinho branco.