Exaustos, mas aliviados. Foi assim que o primeiro grupo de afegãos evacuado da capital, Cabul, chegou esta quinta-feira às 5h00 a Madrid.
Este voo é o primeiro de um plano elaborado a toda a pressa pela Espanha a fim de retirar do Afeganistão todos aqueles que colaboraram com as forças militares espanholas e com a missão diplomática, e cujas vidas estão seriamente ameaçadas.
Trata-se de cinco cidadãos espanhóis mais 48 afegãos e as suas famílias, que após uma verdadeira odisseia, conseguiram chegar ao aeroporto de Cabul e embarcar num dos três aviões A400M, um deles com pessoal médico. O Governo espanhol pôs estes aviões e tripulações ao serviço deste plano de evacuação, com o objetivo de trazer para Espanha entre 400 e 600 pessoas ameaçadas e as suas famílias.
O governo espanhol quer que a operação esteja concluída até 31 de agosto, o prazo estabelecido pelos EUA para o abandono definitivo do Afeganistão, assim deixando desprotegido o aeroporto, que é agora guardado por seis mil efetivos do exércitdo exército norte-americano.
Medo e gratidão
"Estamos muito gratos a Espanha, mas muito preocupados com as nossas famílias no Afeganistão", confessa um antigo intérprete da Embaixada de Espanha, que não deseja identificar-se, aos jornalistas que aguardavam a chegada do pela chegada deste primeiro contingente de evacuados de Cabul no aeroporto militar de Torrejón de Ardoz, perto de Madrid.
Todos mostram grande relutância em aparecer diante das câmaras ou em fazer declarações. Os aviões da Força Aérea espanhola estabeleceram uma base no aeroporto do Dubai, a capital dos Emirados Árabes Unidos, de onde voam para Cabul para embarcar novos grupos de refugiados, assim que recebem autorização das tropas americanas.
Em Bilbau, onde vive há cinco anos, Reshad Shafir, tradutor e motorista de jornalistas, que também trabalhou durante quatro anos para o exército espanhol estacionado em Qala-e-naw, admite que está "angustiado" com as notícias que recebe do Afeganistão, onde a sua mãe e os seus irmãos tiveram de se esconder. "Consideram traidor qualquer pessoa que tenha trabalhado para países estrangeiros. Andam à procura deles de casa em casa”.
O trabalho prévio de localizar e agrupar, com a devida discrição, as pessoas ligadas à missão espanhola que se sentem ameaçadas, é o mais complicado. Muitas destas pessoas refugiaram-se nas casas de parentes e amigos enquanto aguardavam uma chamada dos serviços diplomáticos, que os têm registados numa lista cuja extensão é desconhecida. Quando as circunstâncias o permitem, são recolhidos por pessoal espanhol que os leva para um ponto seguro nas proximidades do aeroporto, depois de ultrapassarem os controlos rigorosos estabelecidos pelas milícias talibãs.
Dezassete membros dos Grupos Especiais de Operações (GEO) e das Unidades de Intervenção Policial (UIP), expressamente enviados de Espanha, coordenam estas operações e garantem a segurança. Particularmente dramática tem sido a tarefa de resgatar 18 tradutores escondidos em Herat e Qala-e-naw, duas cidades distantes da capital, onde a missão militar espanhola se prolongou durante mais tempo.
Na base de Torrejón, foi criado um centro de acolhimento para cerca de 800 pessoas, onde os refugiados passarão as suas primeiras horas em Espanha ("se possível não mais de 72 horas", segundo o ministro das Migrações, José Luis Escrivá, que esteve presente na base). Aí serão submetidos a exames médicos, incluindo testes PCR para o Covid-19, iniciarão os procedimentos para obtenção do reconhecimento de proteção internacional, e serão canalizados para instituições ou apartamentos de acolhimento, ou para as comunidades autónomas que se tenham oferecido para os ajudar.
Estas instalações serão utilizadas pela UE e pela NATO como primeiro ponto de contacto com a Europa para afegãos vinculados a outros países da UE. Há alguns dias, o Governo de Madrid ofereceu ao Alto Representante para a Política Externa, Josep Borrell, e ao Secretário-Geral da Aliança Atlântica, Jens Stoltenberg, a sua ajuda para coordenar a chegada ao território da UE de afegãos que trabalharam para as instituições europeias, que Bruxelas estima que totalizarão cerca de 400 cidadãos afegãos, mais as suas famílias. A partir de Madrid, estas pessoas viajarão para os seus países de referência.
A França e a Itália também estão a colaborar nesta operação com aeronaves e cobertura de segurança. À meia-noite de ontem, um avião italiano chegou a Torrejón com 50 destes passageiros a bordo.
Alerta de uma enfermeira de Herat
A evolução dos acontecimentos no Afeganistão também provoca sentimentos de frustração e consternação entre o pessoal militar que participou na missão espanhola. Z.L., uma enfermeira em Herat que agora está fora do exército, lamenta-se ao Expresso: "Percorremos um longo caminho em 20 anos e agora foi tudo por água abaixo em poucas horas. Estou especialmente preocupada com as mulheres afegãs, que são as que vão passar por maiores dificuldades.
"Coloquei a minha vida em risco várias vezes. Vejo agora que para nada”, diz por seu lado Roberto Pertejo, tenente-coronel da Força Aérea, que pilotou helicópteros na base de Herat durante oito anos, Em 19 anos de presença contínua no Afeganistão, cerca de 27 mil soldados espanhóis participaram na missão militar, que custou 102 vidas e 3,5 mil milhões de euros de despesa.
Durante esse tempo, as tropas espanholas efetuaram 28 mil patrulhas e 1.400 missões de desativação de engenhos explosivos. Após a sua retirada formal em 13 de maio, apenas um grupo de 24 militares permaneceu em Cabul, adstritos ao funcionamento do aeroporto.
Em 2015, quando teve lugar a primeira retirada maciça das tropas espanholas, cerca de 60 pessoas ligadas à presença espanhola, intérpretes, motoristas, cozinheiros e pessoal administrativo, foram também evacuadas para Espanha, onde agora vivem e trabalham.
PP diz que Sánchez devia ter interrompido férias
Esta situação inusitada teve, naturalmente, repercussões políticas. O Partido Popular (PP, conservador), o principal partido da oposição, censurou o primeiro-ministro, o socialista Pedro Sánchez, por não interromper as suas férias e por não fazer qualquer declaração política, como outros líderes europeus fizeram.
O líder do PP, Pablo Casado, solicitou a comparência parlamentar do chefe do governo. O partido de extrema-direita Vox exigiu que a Espanha não acolhesse refugiados afegãos e que estes procurassem alojamento "nos países muçulmanos vizinhos". O governo vai realizar hoje uma teleconferência do Gabinete de Emergência e Sánchez planeia regressar a Madrid este fim-de-semana.