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China. “É para destruir o espírito de toda a gente”: sistema de violações em massa, “reeducação” e perseguição dos uigures em Xinjiang

Gulzira Auelkhan, uma cazaque que esteve em cativeiro 18 meses nos campos de Xinjiang, tinha a função de despir mulheres da minoria muçulmana, prender-lhes as mãos e esperar enquanto um homem abusava delas. Às denúncias de violações em massa juntam-se as antigas acusações de genocídio e limpeza étnica. A China fala “em mentiras e alegações absurdas”

Gulzira Auelkhan na sua casa em Akshi, no Cazaquistão
The Washington Post

Gulzira percorria de memória o rotineiro labirinto da agonia. Caminhar até uma sala, entrar, despir as mulheres da cintura para cima, prender as mãos delas atrás da cabeça e sair. “Depois um homem entrava, algum chinês de fora ou um polícia. Eu sentava-me em silêncio ao pé da porta e, quando o homem saía, eu levava a mulher para tomar banho.” A limpeza da sala também morava na lista das suas responsabilidades. Ou colaborava ou era castigada.

Gulzira Auelkhan, uma cazaque que esteve em cativeiro nos campos de "reeducação" de Xinjiang, na China, durante 18 meses, contou esta história à BBC, confirmando que está instituído um sistema de violações em massa contra mulheres de minorias uigures, cazaques e outras, uma versão corroborada por outras ex-prisioneiras e por um guarda. E contou mais: os homens pagavam para escolher as prisioneiras jovens mais bonitas. Lamenta nunca ter sido capaz de intervir ou resistir. Algumas mulheres não regressavam à cela onde o corpo envelhecia a uma velocidade diferente. As que tinham direito a esse malfadado bilhete de volta eram ameaçadas. Que não falem disto a ninguém, diziam-lhes. Que fiquem em silêncio. Para Auelkhan a ideia é simples: “É para destruir o espírito de toda a gente”.

Na região de Xinjiang, no noroeste da China, está em marcha uma limpeza étnica, nomeadamente contra os uigures, uma minoria muçulmana. Um genocídio. É esta a acusação de vários grupos de direitos humanos, que ganharam um aliado importante nas últimas semanas: a China está a executar um “genocídio e crimes contra a Humanidade”, denunciou o secretário de Estado dos Estados Unidos Mike Pompeo, a somente 24 horas da tomada de posse de Joe Biden. A China reagiu às acusações dizendo que relatos de detenção em massa e esterilização forçada são “mentiras e alegações absurdas”.

Há apenas dois dias, um parecer jurídico formal do escritório de advogados Essex Court Chambers, publicado recentemente no Reino Unido, dava conta de que havia um “caso muito credível” de que o Governo chinês está a executar um genocídio contra os uigures. Ao longo das 100 páginas, os advogados londrinos concluíram que é uma ação orquestrada pelo regime e que a intenção é clara: destruir a minoria muçulmana no noroeste da China. A esterilização forçada, o aborto e a transferência de crianças para fora da comunidade são algumas intervenções governamentais junto desta minoria. O “envolvimento próximo” do Presidente Xi Jinping daria força a um caso “plausível” de genocídio contra ele.

Em meados do século XX, os uigures representavam quase a totalidade da população daquela região (22 milhões de pessoas), agora 40,5% já são da etnia han, a que pertence quase a totalidade do povo chinês. Os uigures e os que lutam pelos direitos humanos desta minoria têm falado, nos últimos tempos, em limpeza étnica: o Governo chinês quer diluir a concentração daquela religião, fazê-los desaparecer, interná-los “em unidades hospitalares” de “recondução ideológica”. Os campos servem para tal: reeducar, impor outras verdades e credos. Estima-se que pelo menos um milhão de pessoas das minorias uigures, cazaques e outras, todas etnias predominantemente muçulmanas, estão nesses campos de “reeducação”, pode ler-se no site da Amnistia Internacional.

O início do atual drama humanitário remonta a março de 2017, quando se intensificaram as detenções. Um decreto governamental, após um ataque terrorista de um separatista uigur, ditou a “desextremificação”. Ou seja, o sentido contrário do alegado extremismo. O Presidente Xi Jinping, em visita àquela região pouco depois da investida terrorista, ordenou às autoridades locais para atuarem “absolutamente sem piedade”. O “New York Times” teve acesso e divulgou mais de 400 páginas de ficheiros que davam conta da operação de detenções em massa de muçulmanos.

Seguiram-se internamentos massivos, vigilância intrusiva, doutrinação política e assimilação cultural forçada contra os uigures, cazaques e outros grupos étnicos predominantemente muçulmanos. Há relatos de tortura e abusos de variadas naturezas. A maioria das famílias desconhece o fado de diversos parentes. A desconfiança quanto à observância religiosa - barba, lenço na cabeça, evitar o álcool -, contactos com familiares no estrangeiro, deslocações ao estrangeiro em negócios ou para estudar ou ter WhatsApp, uma plataforma de mensagens que por ser encriptada finta a vigilâncias das autoridades, são algumas das razões para membros de minorias serem arrastados para aqueles campos.

O regime chinês é acusado de ir além da opressão e do aprisionamento de minorias étnicas. Segundo Qelbinur Sidik, uma professora obrigada a dar aulas nos campos, o Governo tem investido numa campanha agressiva para interromper a natalidade entre as minorias muçulmanas daquele país. Aos 50 anos, contou ao "Guardian", o Governo impôs a sua esterilização como se fosse um animal. Três anos antes, em 2017, já havia sido castigada com a insistência de que deveria colocar um dispositivo intra-uterino para evitar qualquer risco de gravidez (e colocou). Tanto ela como a única filha, uma jovem que na altura estava na universidade, foram alvos dessa pressão. Ao diário inglês, Sidik revelou que recebeu mensagens das autoridades chinesas, em 2019, a indicar que as mulheres entre 19 e 59 deveriam colocar esse dispositivo ou ser esterilizadas. As ameaças às mulheres das minorias muçulmanas é uma constante, acusou então.

Em declarações ao Expresso em agosto de 2019, Nury A. Turkel, diretor e fundador do Uyghur Human Rights Project, uma organização que sinaliza os abusos cometidos contra os uigures em Xinjiang, denunciou que “as pessoas têm sido submetidas a abusos físicos degradantes e humilhantes”. E acrescentou: “A China usa o seu dinheiro para comprar o silêncio de todos os países. Depois da Segunda Guerra Mundial, ninguém estava preparado para isto, ninguém estava preparado para uma nova limpeza étnica e um genocídio cultural”.

De acordo com os documentos a que a BBC teve acesso, o processo de “educação” desenvolvido naqueles campos da região de Xinjiang previa, entre outras coisas, "lavagem cerebral" e a “eliminação do diabo”.

A mesma cadeia de televisão, que ouviu relatos de tortura e de abusos sexuais, indica ainda que grupos de direitos humanos defendem que o Governo chinês tem vindo a eliminar gradualmente a liberdade religiosa e outras liberdades dos uigures.

A fuga ou a deserção até podem serenar a alma, mas não é o fim da história. O pesadelo continua fora de portas, pois a campanha de intimidação e perseguição mantém-se, como reporta este artigo da Amnistia Internacional. “Os relatos arrepiantes de uigures que vivem no exterior são a prova de como a repressão contra os muçulmanos da China se estende muito além das suas fronteiras”, alertou naquelas páginas Patrick Poon, investigador da Amnistia Internacional para a China. E a trama não cessa de piorar: na passada sexta-feira, deputados da oposição ao Governo de Recep Tayyip Erdoğan, na Turquia, acusaram o regime de ‘vender’ uigures à China como moeda de troca de vacinas.

Segundo a Amnistia Internacional, assente em dados do Congresso Mundial Uigures, existem entre 1 milhão e 1,6 milhões de uigures a viver fora da China. Cazaquistão, Quirguistão e Uzbequistão albergam as comunidades mais significativas. Num patamar menos expressivo, há comunidades uigures a viver em países como Afeganistão, Alemanha, Arábia Saudita, Austrália, Bélgica, Canadá, Estados Unidos da América, Noruega, Países Baixos, Rússia, Suécia e Turquia.