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"Foi a revolución de las pibas, uma conquista histórica": o aborto na Argentina visto pela ministra das Mulheres de Buenos Aires

Estela Díaz revela, em entrevista ao Expresso, o que significa a despenalização do aborto no país, uma campanha em que a ex-dirigente sindical esteve desde o início, e reflete sobre a onda verde e o eventual efeito-contágio na América Latina

Ricardo Ceppi

O aborto foi descriminalizado até às 14 semanas na Argentina na madrugada de 30 de dezembro, alterando uma lei de 1921. Estela Díaz, ex-dirigente sindical e agora ministra das Mulheres, Políticas de Género e Diversidade Sexual da província de Buenos Aires, esteve na campanha pela despenalização do aborto desde 2005 até ao histórico 30 de dezembro, altura em que a lei, após nove tentativas, foi aprovada. Segundo a Associated Press, os abortos clandestinos já mataram mais de 3000 mulheres no país desde 1983. São quase 40 mil as mulheres que são hospitalizadas por ano por causa deste procedimento.

O aborto é legal e gratuito no seu país. O que significa isto para as mulheres argentinas e para a sociedade argentina?
Em termos concretos, a respeito do que diz a lei, é a interrupção voluntária da gravidez até às 14 semanas de gestação a pedido da mulher. É a continuidade de outras modalidades que já tínhamos. Antes tínhamos um sistema de aborto legal para casos em que havia perigo para a saúde ou para a vida da mulher e para casos de violação.

Para além disso, esta legislação contempla a atenção pós-aborto, e prevê a garantia de que o sistema de saúde, tanto público como privado ou da segurança social, garantam esta prática. Isto são os termos concretos e práticos do que é a atenção à saúde quanto às interrupções de gravidez. Depois, se pensamos desde o ponto de vista cultural, político e simbólico, é uma conquista histórica na luta pelos direitos das mulheres. Isto supõe desde já uma mudança importantíssima porque acaba com a clandestinidade do aborto, com a criminalização ou ameaça de criminalização que era suposto ter o aborto como sentença no código penal. Para além de ameaçador, limitava os direitos personalíssimos das mulheres. Isto era uma ameaça em relação à sua decisão autónoma à volta da reprodução. Por isso, muda significativamente o posicionamento subjetivo das mulheres, crescem em autonomia, crescem em igualdade. Havia uma profunda desigualdade na lei do aborto.

Para o sistema de saúde também é muito importante, pois a mudança da normativa dá muita certeza aos profissionais de saúde em relação à intervenção. Antes havia dúvidas quanto à certificação das causas, havia a ameaça de sectores que podiam processá-los. Bom, hoje também melhoram as condições para os profissionais de saúde para quando têm de intervir nessa prática. Por isso dizíamos que esta era uma grande dívida da democracia com as mulheres argentinas, com as grávidas, portanto melhorou a qualidade democrática com a conquista deste direito.

Foram necessárias nove tentativas para aprovar a lei. Que caminho foi este? Quando começou e porque houve uma grande resistência no país?
Nós temos uma história comprida e podemos até situar as primeiras exigências pelo aborto legal na Argentina em meninas com mais de 16 anos. Mas especialmente a partir do fim da última ditadura militar, que termina em 1983, aí começa o período mais longo da nossa democracia. Foi um processo de conquista de direitos que estava profundamente atrasado, de direitos civis, direitos políticos e entre eles também havia os direitos sexuais e reprodutivos.

Recentemente conseguimos, pela primeira vez no país, montar um programa que atende a política de saúde sexual, isto é, entregar métodos contracetivos gratuitos no sistema de saúde público, em 2003. Tivemos 20 anos de democracia na luta por este direito. E, depois, foram-se conquistando outros, a educação sexual integral e a lei integral de prevenção contra violência por questões de género. Em 2005 nasce a campanha nacional pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito. Depois de 15 anos de campanha chegou a conquista da lei.

Houve fortes resistências, sabemos que o terreno dos direitos das mulheres, mas especialmente do direito ao aborto, se inscreve numa forte tradição da dominação e controlo patriarcal e machista sobre o corpo das mulheres. Além disso, existe o peso que as tradições religiosas colocam neste tema em particular. Nós, na América Latina, temos todos os nossos países com fortes tradições religiosas, com o catolicismo como a mais tradicional, mas também houve muitas pregações das igrejas evangélicas nesta última década.

Por isso, avançar neste direito ganha laicidade para o Estado, que tem um compromisso mais laico, um compromisso com a diferença das crenças e com reconhecer que o Estado deve garantir o acesso a um direito personalíssimo como é este e que as pessoas decidam segundo o seu contexto, momento e as condições em que ocorre essa gravidez não desejada, e o Estado tem de acompanhá-las nesse direito. Pensamos que é uma conquista muito forte, não só no plano exclusivo do acesso ao direito ao aborto, mas também no que significa quanto ao reconhecimento da emancipação das mulheres, da construção de maior cidadania, por isso dizia no início de maior igualdade.

Está no plano da igualdade. As resistências estão no mundo inteiro e até em países que conseguiram a conquista do aborto há muitos anos. Há sectores que continuam a enfrentar isto como um bastião da luta conservadora, porque é o controlo sobre o corpo e a reprodução como um bastião da limitação da autonomia das mulheres, que também está ligada com a autonomia política. Creio que perceberam isso muito bem, o movimento feminista argentino e fundalmental as jovens que abraçaram esta causa e que encheram as ruas da Argentina - este ano não foi possível [com a pandemia], mas aconteceu nas redes sociais -, com muita vitalidade, muita alegria, muita criatividade porque entendiam que aqui havia uma luta política pela autonomia delas, por justiça social e igualdade.

A onda verde, certo?
A onda verde. E a “revolución de las pibas”. Aqui dizíamos que era revolução das jovens.

Falemos um pouco mais da lei. O que acontece se médicos se recusarem a fazer a intervenção?
A lei tem prevista a objeção de consciência, prevê que se reconheça a objeção de consciência individual. É um direito legalmente estabelecido na Argentina, mas a pessoa tem de ser objetora em toda a sua prática profissional, seja no sector público ou privado, tem de haver honestidade profissional neste sentido. Por isso, se no período da interrupção da gravidez surge uma pessoa objetora de consciência, imediatamente deve ser encaminhada para um profissional que o faça. N

o serviço público de saúde deve garantir-se equipas que façam a prática, a lei modificou-se para se conseguir votos, e reconheceu que, no sector privado, podia haver algumas clínicas profissionais ligadas às igrejas em que nenhum profissional faça a prática do aborto, por isso deve também encaminhá-lo, e o custo que surgir daí fica à conta dessa mesma clínica, pagando à entidade que faça o aborto. Mas a lei também aclara que, se estiver em perigo a vida da mulher, a prioridade é a vida da mulher e não a objeção de consciência, por isso esse profissional deve garantir esse aborto se não há outro para o fazer.

Como será com as estrangeiras residentes no país e com as não residentes? Há medo que se converta num negócio ou, pelo menos, há debate sobre isso?
É para todas as pessoas residentes no país, sejam de que nacionalidade forem. O nosso país abraça historicamente a imigração. Tivemos alguns períodos com presidências que colocaram restrições, não é o caso, abraçamos como sempre a imigração e quem está no país pode aceder à prática, mas tem de ser residente.

Marcelo Endelli

Houve tentativas para reverter a lei?
Vimos como grupos se opuseram em diversos sectores, foi transversal, depois da rejeição de alguns partidos políticos. Mas houve uma apresentação à justiça numa província do Norte da Argentina, na província de Salta, sobre a constitucionalidade da lei da interrupção voluntária da gravidez, e o tribunal já a rejeitou. O juiz disse que esta lei é perfeitamente constitucional e tomou como referência e antecedente um erro, pois os abortos já eram legais na Argentina desde 1921 [mediante violação ou risco para a mãe].

O caso conheceu-se por ‘Fallo F.A.L’ [uma menina de 15 anos foi violada pelo padrasto e a mãe recorreu à justiça para garantir o aborto, algo primeiro rejeitado e depois, após 20 semanas de gravidez, finalmente autorizado pelo Supremo da província], em que se impediu o aborto. A lei [de 1921] estabelecia a constitucionalidade do artigo 86 das causas para o aborto legal. O juiz disse que esta nova lei só amplia os prazos e que é totalmente enquadrada na constitucionalidade que tinha a lei vigente. Tiveram a primeira derrota, os que quiseram bloquear a lei judicialmente. Aproveito para contar que eu, como ministra das Mulheres da província de Buenos Aires, juntamente com o Ministério da Saúde da província, já apresentámos na segunda-feira, dia 19, o guia para implementação da interrupção voluntária da gravidez em todo o sistema de saúde da província de Buenos Aires.

Vale a pena partilhar que a nossa província é muito grande, tem 40% da população da Argentina, tem 135 municípios, tem 17 milhões de habitantes, por isso estamos a trabalhar para que todas e todos os profissionais de saúde tenham certezas quanto à aplicação e ao acompanhamento das decisões de funcionários, ministros de saúde, equipas, para que a interrupção da gravidez legal e voluntária seja garantida.

Como ministra da província de Buenos Aires, qual foi o seu papel e o do seu ministério neste tema nacional?
Acompanhámos o Presidente da nação e os Ministérios das Mulheres e da Saúde nacionais, que foram os que promoveram a lei. Quando eles geraram o debate, nós participámos, tanto o ministro da Saúde provincial como eu, nos debates da Câmara dos Deputados, dando fundamentos, acompanhado e apoiando o debate da lei. Depois, o que temos é a incumbencia mais clara da implementação.

Na realidade, o Ministério da Saúde da nação é um organismo reitor das políticas, mas a Argentina é um país federal, as províncias e os sectores de saúde é que têm de implementar estas políticas. Por isso, vamos ter de trabalhar para que a lei realmente se faça efetiva e que chegue à nossa província. Não só acompanhámos, estamos profundamente empenhados neste direito e muito felizes por ser lei. No meu caso, antes de ser ministra, fui dirigente sindical. Era responsável pela Secretaria de Igualdade de Género da Central das Trabalhadoras da Argentina, uma das centrais sindicais. Estive na campanha pelo aborto desde o seu nascimento até aqui, agora noutra função.

O que mais a surpreendeu neste processo?
Creio que cada uma sentiu e todas nos perguntámos se era verdade que era lei [risos].Deu-se uma conjugação perfeita entre um movimento social de muitas fortalezas, como é o movimento feminista e outro pelo direito ao aborto na Argentina, e a decisão politica de um Governo que apresentou o projeto, que teve a iniciativa de apresentar o projeto de lei da interrupção voluntária com uma lei que também apoia as mulheres que decidem continuar a gestação e que melhora as politicas de controlo de gravidez, com uma forte presença para acompanhar essas decisões [individuais], seja interromper a gravidez ou continuá-la, com o Estado presente.

Isso construiu-se com uma aliança virtuosa entre uma sociedade civil e organização muito dinâmicas e muito mobilizadas, com enorme força, e uma forte decisão política do Governo nacional e da província para que isto fosse lei. Isso fez possível com que agora realmente seja lei, era muito dificil que fosse construido assim. O Presidente Alberto Fernández comprometeu-se na campanha eleitoral a promover este debate, para isso contribuiu enormemente que a presidente do Senado seja Cristina Kirchner, a vice-presidente do país, que também teve um papel importantíssimo. A lei foi aprovada com 38 votos a favor e 29 contra, nunca se pensou num número assim, é um pouco a surpresa, a margem grande do triunfo no Senado. A presidência de uma mulher como Cristina no Senado foi decisiva.

A Argentina é o terceiro país da América do Sul a aprovar esta lei. Acredita que será uma onda verde imparável na América Latina ou é demasiado ambicioso?
Acredito que está a crescer muito. Para nós foi muito importante e contribuiu a legalização na Cidade do México e no Uruguai. Parece-me que está mais forte porque o Chile começou a debater em condições a interrupção voluntária de gravidez até às 14 semanas de gestação. Creio que é um debate que vai chegar brevemente à Bolívia. É imparável a força, parece-me que não se pode conviver com semelhantes níveis de criminalização e desigualdade com as mulheres nos tempos em que vivemos, em que para além disso temos um protagonismo político e social enorme nas nossas comunidades, no trabalho e na sociedade.

Então, conviver com a clandestinidade do aborto é tão injusto que acredito que os países mais resistentes não podem escapar a este debate. Temos realidades complexas na nossa América e sabemos que há alguns governos com um corte perfeitamente conservador, até misógino, diria, como é o caso do Governo do Brasil. Mas noutros casos, com governos liberais, como no Chile, estão a ter este debate. Parece que há uma onda verde, uma onda feminista que tem uma força gigantesca na América Latina.

Ricardo Ceppi

Outro dia numa entrevista falava que se trata de continuar a dar passos para ampliar direitos. O que faz falta à sociedade argentina? Que outras mudanças deveriam acontecer?
A mim parece-me que, claro, com a conquista desta lei deve garantir-se a sua implementação e o acesso a todas as pessoas. A lei é um passo, está certo que se trabalhou muito com as equipas de saúde para a sua implementação, mas agora há que continuar a garantir tudo o que tem a ver com acesso aos direitos sexuais e reprodutivos. A mim parece-me que há uma agenda fundamental e que para nós é prioritária, no ministério da província, que é o que tem a ver com o trabalho das mulheres.

Continuamos nesta sociedade com uma profunda desigualdade em termos salariais e laborais. E quando penso no trabalho, penso no sentido amplo, no trabalho reprodutivo e não reprodutivo, no remunerado e não remunerado, por isso toda a tarefa de cuidado recai nas mulheres, sem reconhecimento e que impacta na desigualdade, não só laboral como de participação e outros aspectos. Essa é a agenda que tem de ganhar mais força necessariamente porque creio que vai estar intrinsecamente ligada a outra, a violência de género, na medida que se pode construir uma autonomia económica, de projeto de vida. Isso vai ajudar a baixar os indicadores muito altos que temos quanto à violência de género.