Num gesto duro do ponto de vista quer institucional quer familiar, o rei de Espanha renunciou à herança que pudesse vir a receber um dia do seu pai, Juan Carlos, e retirou-lhe a verba anual de 194 mil euros prevista no orçamento da Casa Real. A decisão de Filipe VI, comunicada este domingo num longo texto, visa cortar qualquer ligação entre o atual chefe de Estado e fundações associadas ao seu antecessor, uma das quais está sob investigação por alegadamente ter recebido milhões de dólares de fundos sauditas.
Filipe VI recorda, no comunicado emitido pelo palácio da Zarzuela, o discurso que proferiu no Parlamento quando foi proclamado rei, em 2014. Disse então que a Coroa deve “preservar o prestígio e observar uma conduta íntegra, honesta e transparente”. É em prol desses princípios, diz, que recusa herdar do pai quaisquer montantes, ativos, investimentos ou estruturas financeiras “cuja origem, características ou finalidade possam não estar em consonância com a legalidade ou com os critérios de retidão e integridade que regem a sua atividade institucional e privada e que devem guiar a atividade da Coroa”.
Cioso de blindar a sua imagem face a atividades menos edificantes dos seus familiares, o rei já retirara à irmã o título de duquesa de Palma de Maiorca. A infanta Cristina foi ré num caso de corrupção que levou à cadeia o marido, Iñaki Urdangarín.
Viagens de avião e comboios de alta velocidade
A fundação Zagatka foi criada no Liechtenstein em 2003 é propriedade de Álvaro de Orleães, um primo de Juan Carlos que lhe terá pago voos em viagens privadas através de uma conta no banco suíço Crédit Suisse, escreve o diário “El País”.
Criada em 2008, a fundação Lucum tem sede no Panamá, um conhecido paraíso fiscal, e foi recetora de um donativo de 100 milhões de dólares (65 milhões e euros) da Arábia Saudita, destinado ao antigo chefe de estado.
Filipe VI afirma no comunicado que desconhecia a primeira e que era dela beneficiário, embora tivesse soubesse que – como noticiou o diário britânico “The Telegraph” – era beneficiário da segunda. Esse dado foi-lhe transmitido pelo escritório de advogados britânico Kobre&Kim, que representava também Corinna Larsen, uma ex-amante do pai.
O atual rei garante ter tomado todos os passos formais para se desvincular das fundações, perante notário, e fazer constar que desconhecia todos os negócios do progenitor e que jamais dera autorização para que o seu nome – e o da filha mais velha, Leonor, herdeira da coroa – fosse neles envolvido.
O diário digital espanhol Público.es escreve, porém, que a renúncia de Filipe VI não tem efeito jurídico enquanto Juan Carlos viver. Cita para esse efeito o artigo 991 do Código Civil espanhol: “Ninguém poderá aceitar nem repudiar sem estar certo da morte da pessoa de quem deva herdar e do seu direito à herança”. O artigo 816 do mesmo código reza que “toda a renúncia ou transação sobre a legítima futura entre quem a deve e os seus herdeiros forçosos é nula”.
A fundação Lucum está sob investigação da Procuradoria Anticorrupção devido aos 100 milhões sauditas. Tudo começou quando um procurador suíço suspeitou que o dinheiro fosse uma comissão entregue a Juan Carlos pelo rei saudita, pela adjudicação das obras do comboio de alta velocidade até Meca à empresa espanhola UTE.
A companheira das caçadas
O rei emérito terá oferecido o dinheiro à sua ex-amante Corinna Larsen em 2012, quando ainda estava no trono. Os advogados desta referiram, noutro caso em que está envolvida, esse “presente não solicitado” de Juan Carlos. Garantem, porém, que foi um gesto de carinho do antigo monarca para com a mulher que muito cuidara dele em tempos de doença.
Larsen foi acompanhante de Juan Carlos na famosa caçada ao elefante que indignou os espanhóis (então a sofrer os efeitos da crise global) e o levou a pedir desculpa. Também conhecida como Corinna zu Sayn Wittgenstein, está sob investigação por eventuais delitos de corrupção e branqueamento de capitais.
Juan Carlos nomeou, diz o comunicado do filho, o advogado Javier Sánchez-Junco Mans para representá-lo. Foi o causídico que conduziu a acusação pública ao banqueiro Mario Conde, do Banesto, nos anos 90.
Caso pode acabar no Supremo
Filipe VI informa que escreveu ao pai, exprimindo a recusa de qualquer designação como beneficiário das fundações. O comunicado acrescenta que Juan Carlos quer que se saiba que “em nenhum momento facultou informação” ao filho sobre as mesmas. O rei emérito, que abdicou em 2014, abandonou a vida pública no ano passado, semanas depois da data em que Filipe VI afirma agora ter ido ao notário.
Vários dos partidos que permitiram a investidura do socialista Pedro Sánchez como primeiro-ministro pediram uma comissão parlamentar de inquérito às atividades de Juan Carlos. Um deles foi o Unidas Podemos, parceiro na coligação de governa do Partido Socialista Operário Espanhol. A Mesa do Congresso dos Deputados rejeitou o pedido, com os votos do PSOE e da direita.
O antigo monarca pode ser julgado pelo Supremo Tribunal espanhol caso tenha cometido delitos após a sua abdicação. Antes disso era rei e, como tal, gozava de imunidade.