1. O que está a acontecer na fronteira entre a Grécia e a Turquia?
“Uma invasão”, diria o ministro grego para o Desenvolvimento - aliás, disse. Mas não é isso que está a acontecer e basta a olhar para o número de pessoas que estão a entrar na Europa para perceber que o que acontece neste momento na Grécia nem se aproxima das entradas registadas em 2015 (perto de 900 mil pessoas, segundo dados das Nações Unidas). O que está a acontecer é que o Presidente da Turquia anunciou no fim de semana que iria deixar de impedir que refugiados e migrantes cruzaram a fronteira para Grécia - algo que estava definido por um acordo assinado em 2016 com a União Europeia e sobre qual lhe falaremos mais adiante. Há duas formas de entrada na Grécia para quem vem ilegalmente da Turquia: pela fronteira terrestre e pela marítima. Por terra, a travessia é feita sobretudo pelas cidades de Kastanies e Kipoi, no entanto, ao longo da vedação de arame farpado ali existente há vários pedaços cortados e, possivelmente, que já serviram de local de passagem. Nos últimos dias, a polícia grega reforçou a vigilância do seu lado da fronteira, enquanto do lado turco se ergueu uma espécie de acampamento com, segundo números da imprensa local, três mil pessoas. As autoridades garantem que só ao longo do fim de semana impediram a passagem de pelo menos dez mil pessoas. Para controlar a escalada de tensão, foi lançado gás lacrimogéneo e disparadas balas para o ar. A Grécia já pediu apoio à Frontex - a agência europeia para o controlo de fronteiras - para enviar mais operacionais.
Por mar, o destino é quase sempre as ilhas gregas de Lesbos, Samos, Chios, Kos e Leros. Mais de mil pessoas desembarcaram até segunda-feira. As ilhas, já sobrelotadas há algum tempo, estão agora a tentar lidar com este aumento do fluxo migratório. Em Lesbos, por exemplo, há 21 mil refugiados e migrantes numa ilha com uma população local de cerca de oito mil. Há registo de grupos ligados a movimentos de extrema-direita a impedirem o desembarque destas pessoas, assim como relatos de que a guarda costeira helénica está a assustar migrantes que chegam em embarcações, assim como acusações das forças marítimas turcas estarem a escoltar os barcos até águas territoriais europeias. “Esta não é a primeira vez que a Turquia abre as fronteiras, já o fez em 2015. Desde então - e após a assinatura do acordo com a União Europeia - não voltou a fazê-lo”, diz ao Expresso Carlos Nolasco, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e especialistas em migrações (integra o Núcleo de Estudos sobre Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz daquele centro de investigação). “Portanto, não é uma prática nova. A Turquia funciona como uma porta, um tampão entre o Médio Oriente, a Ásia e a Europa. Uma posição de privilégio que lhe permite chantagear. O que me ocorre é que a Europa não está a conseguir lidar com isso.”
Felipe Pathé Duarte, professor e investigador na área da segurança internacional, não vai tão longe - considera chantagem uma palavra muito forte. “Sem dúvida que há uma pressão e que a Turquia está a usar esta situação como uma alavanca de pressão política e é a forma mais eficaz de o fazer.”
Perante toda esta situação, os Médicos Sem Fronteiras dizem isto: “As medidas de emergência anunciadas pelo Governo grego vão ter consequências devastadoras quanto ao direito de pedir proteção internacional e de enviar pessoas de volta à Turquia. Isto só nos vai conduzir a mais caos, mortes no mar, escalada de violência e um desastre humanitário ainda maior. Os Estados-membros devem retirar estas pessoas, criar um sistema de asilo que funcione e parar de encurralar estas pessoas em condições terríveis”.
2. Quantas pessoas já passaram a fronteira?
Tal como Expresso já escreveu, esta é uma resposta que depende de quem a dá. Há várias versões para esta história: a Grécia fala em “algumas centenas de entradas” e mais de dez mil pessoas travadas na fronteira terrestre, a Turquia diz que foram quase 80 mil e que nos próximos dias podem chegar mais entre 25 mil a 30 mil pessoas - quem está a chegar à Europa conta que nas praias turcas muitos mais esperam pela sua vez.
A questão está também na perspetiva do que pode acontecer: na Turquia há 3,7 milhões de refugiados, um número que pode aumentar caso os cerca de quatro milhões de refugiados que se encontram na Síria, junto à fronteira turca, entrem no país na sequência da ofensiva sobre Idlib (também já lhe explicaremos esta parte adiante).
3. E depois ainda há outra fronteira…
A quase dois mil quilómetros desta fronteira Grécia/Turquia há outra ainda mais delicada: a região no noroeste da Síria é o último reduto da oposição ao regime de Bashar al-Assad, onde há quatro milhões de pessoas no meio de conflito entre o Governo (apoiado pela Rússia e o Irão) e a oposição (que tem o apoio da Turquia). “Não se sabe bem o que vai acontecer em toda a Síria, é um país completamente devastado e a fronteira da Turquia com a Síria é ainda mais delicada porque apresenta um perigo bélico de elevada densidade”, sublinha Carlos Nolasco. “Temos de ter em consideração que o que se está a passar na Síria tem um impacto muito grande político e humanitário” acrescenta Pathé Duarte.
Não só aquele território está a ser disputado por várias forças como a recente ofensiva das forças governamentais despertou na nos turcos um “ímpeto semineo-otomano”, procurando “aumentar a sua esfera de poder na região” e “não está disposta a abdicar”. Acabamos assim por ter em Idlib quase como três conflitos: Governo sírio v.s. a oposição, Governo sírio v.s. a Turquia e Turquia v.s. Rússia.
“Resolver o problema na origem é resolver o conflito sírio, que, neste momento, está numa guerra regional, em que um conjunto de Estados com interesse de influência regional disputam hegemonia”, explica Pathé Duarte.
4. Porquê abrir agora as fronteiras?
A justificação apresentada pela Turquia foi o ataque aéreo da passada quinta-feira que atingiu militares turcos e provocou 33 mortos - um recorde de vítimas mortais num só dia para os turcos nos últimos anos. “Este é o argumento fácil, mas que serve para criar tensão sobre a União Europeia. A verdade é que muito complicado evocar uma única razão para esta decisão. Aparentemente a Turquia diz também que tem havido incumprimentos da União Europeia no compromisso estabelecido”, começa por explicar Carlos Nolasco. E continua: “O que percebemos também é que logo após da morte dos militares houve um aumento de tensões com a Rússia”.
Pathé Duarte lembra que a Turquia atravessa atualmente difíceis desafios internos: um Presidente que quer legitimar o seu poder, um crescimento de um sentimento antiárabe (em parte pelo grande números de refugiados sírios nos país) e ainda uma grande crise económica. Perante a ofensiva sobre Idlib, têm duas hipóteses: “Repensar a sua estratégia na Síria ou conseguir o apoio da Europa ou dos EUA para contrariar a ação militar sírio-russa”.
Assinar o “vergonhoso” acordo para o controlo de fluxo migratórios em março de 2016, refere Carlos Nolasco, foi a prova do receio da Europa em relação à entrada de refugiados e migrantes. “Se assim não fosse não o teriam assinado”, defende. “Não sabemos bem o que aconteceu no fim de semana na Grécia mas há um claro sinal por parte da Turquia, que vê neste medo da Europa uma forma de chantagem muito óbvia: eu abro a porta se quiser. É uma posição muito fácil para a Turquia e muito difícil para a União Europeia”, esclarece Carlos Nolasco. “Há uma fragilidade da posição europeia no que se está a passar”, acrescenta ainda Pathé Duarte.
5. O que a UE diz sobre o assunto?
Até agora, pouco. Além de da aprovação do Frontex para uma intervenção rápida nas fronteiras entre a Grécia e a Turquia, Bruxelas disponibilizou ainda 700 milhões de euros (350 milhões que ficam já disponíveis e os restante podem “vir a ser requeridos como uma verba prometida”), assim como a mobilização de assistência médica através do Mecanismo Europeu de Proteção Civil.
O anúncio foi feito pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que esta terça-feira esteve na região da fronteira acompanhada do primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, e do presidente do Parlamento Europeu, David-Maria Sassoli.
Ursula von der Leyen deixou ainda o que pareceu ser um aviso à Turquia: “Todos aqueles que tentem testar a União Europeia vão ficar desapontados, pelo que esta é altura de reafirmarmos os nossos valores europeus”.
Para esta semana ainda é esperada uma reunião entre os ministros da Administração Interna dos Estados-membros para discutirem a escalada da tensão na fronteira grega.
O Expresso contactou o Ministério português da Administração Interna para comentar a situação, mas não foi possível obter uma resposta. No Parlamento, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, acusou a Turquia de usar os refugiados “como arma de arremesso” para “que a Europa pague mais ou tenha uma posição mais conforme aos interesses turcos na relação que tem com a Síria e na relação muito ambígua com a Rússia”.
6. Como fica o acordo entre a UE e a Turquia?
Não se sabe ao certo como fica o acordo. Se por um lado esta decisão da Turquia é uma clara violação, os turcos também acusam a União de já o ter violado várias vezes.
O acordo prevê que todos os migrantes que chegam à Grécia de forma irregular, que não peçam asilo ou tenham um pedido de asilo recusado sejam devolvidos à Turquia; que cada sírio que entrou irregularmente em território grego seja devolvido aos campos turcos e em troca seja legalmente recebido um sírio na União Europeia; que os custos de todos os retornos sejam suportados pela UE, ao mesmo tempo que Ancara toma medidas para que não surjam novas rotas migratórias; há ainda o compromisso europeu de simplificar o regime de vistos para os cidadãos turcos e ainda o envio de milhões de euros para a Turquia no âmbito do mecanismo em favor dos refugiados e de alguns projetos relacionados com a causa; por fim, ambas as partes prometem melhorar as condições humanitárias na Síria, sobretudo junto à fronteira turca.
O acordo vigora até 2021.
7. O que vai acontecer?
Para já não se sabe ao certo como a União Europeia vai agir. Os ministros da Administração Europeia vão reunir-se em breve e até ao final da semana é esperada alguma decisão. Ainda assim, nota Carlos Nolasco, há que recordar que o historial da UE a lidar com as ameaças turcas tem terminado quase sempre com a atribuição de mais financiamento.
“Olhando para o que fez anteriormente, creio que a UE vai dar resposta aos pedidos da Turquia. Provavelmente vai meter mais dinheiro, vai fechar os olhos a determinadas posições políticas e militares que a Turquia tem na Síria, vai atenuar as críticas ao governo de Ancara relativamente à perseguição aos curdos”, refere o investigador, salientando ainda assim a imprevisibilidade do que possa vir a acontecer nos próximos dias.
Pathé Duarte acrescenta que muito pode depender da cimeira marcada para esta semana entre Erdogan e Putin. “Pautam-se por uma certa geometria variável. Entre eles havia uma relação cordial, que já não existe”, sublinha, recordando que a recente ofensiva que matou militares turcos - “embora não se perceba se foi um avião da força aérea síria ou russa” porque a “Síria nunca o faria sem a anuência de Moscovo”.
Carlos Nolasco insiste que a Europa tem adotado uma posição de desresponsabilização em todo o conflito sírio e no consequente fluxo de refugiados que está a provocar fortes tensões na Grécia. “A Europa é em parte responsável pelo que está a acontecer”, defende Carlos Nolasco. “Criou a situação pelos processos de descolonização, pelas suas políticas internacionais e alimenta-a com a venda de armas. A Europa tem a obrigação de dar respostas.”
E Portugal?
A Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) faz um apelo para que o Governo português aceite acolher de forma célere alguns destes refugiados que estão à porta da Grécia, depois de a Turquia ter decidido abrir as suas fronteiras. "[Há uma] tragédia humanitária iminente. Recordamos que estamos a falar de famílias acompanhadas de menores e em situação de particular vulnerabilidade, que fogem de perseguições ou que procuram paz que o seu país não lhes consegue garantir", refere a PAR.
Nesse sentido, a Plataforma considera que é "absolutamente urgente que Portugal reforce a sua capacidade de acolhimento para que possa não só receber mais refugiados, mas também garantir-lhes uma resposta rápida e digna". "A PAR mostra-se, desde já, disponível a acolher os requerentes de asilo e refugiados que se encontrem em território grego e a colaborar com o Governo português na identificação de obstáculos e no reforço da capacidade de acolhimento portuguesa".
A PAR, pela voz do seu coordenador-geral, André Jorge Costa, considera que "nada disto estaria a acontecer" se a "resposta [europeia] fosse célere". "A PAR apela assim, mais uma vez, à efetiva transferência de requerentes e beneficiários de asilo ao abrigo do acordo bilateral - assinado em março de 2019 entre o Governo português e o Governo grego – para Portugal, onde sejam tratados como pessoas e encontrem a Paz e a estabilidade que merecem e procuram".
A Plataforma diz que vai continuar a insistir no seu pedido de acolhimento célere de alguns dos refugiados que estão às portas da Grécia, país que "prometeu reforçar o controlo das fronteiras e recorrendo a gás lacrimogéneo para repelir as centenas de famílias que tentam chegar à Europa através do seu território". A PAR menciona ainda os problemas com que se tem confrontado na integração dos refugiados que se encontram atualmente em Portugal, nomeadamente a "ausência de soluções de habitação estáveis, a morosidade na emissão de documentos que afeta gravemente o acesso aos serviços públicos, como o Serviço Nacional de Saúde, entre outros entraves identificados pela nossa experiência de terreno". A PAR expressa ainda um último desejo: "Esta experiência da PAR deve ser considerada pelo poder público para garantir que Portugal recebe estes requerentes não só de braços abertos, mas também com dignidade".