Internacional

“Tudo isto podia ser evitado. É sofrimento infligido”: em Moria morreram cinco pessoas, há crianças que se mutilam e tentam o suícidio

“É uma vergonha termos de falar sobre isto”: há quase 19 mil pessoas em Moria, na ilha grega de Lesbos, onde nem para três mil há espaço no campo de refugiados. A Grécia é de longe o país onde chegam mais migrantes e refugiados que fogem de países do Médio Oriente e África. Falta espaço e as pessoas “vivem em condições terríveis”, denuncia Apostolos Veizis, da Unidade Médica de Apoio dos Médicos Sem Fronteiras. E isto tem consequências: “cinco pessoas morreram nos últimos dois meses, incluindo uma criança e um bebé”, “temos meninos com dois anos que se mutilam”, “ouço miúdos dizerem-me que preferiam morrer do que viver ali”

Olive Grove, um campo de oliveiras à volta do centro de registo de Moria onde nasceu um acampamento devido à falta de espaço
Anna Pantelia/ imagem cedida pela MSF

Vamos a números: cinco mortes em dois meses - três menores e duas mulheres -, 18 mil pessoas num lugar onde só deveriam estar 2840 e uma casa de banho por cada 300. Três horas três vezes ao dia são nove horas diárias à espera de refeição (pelo menos), 20 crianças que se mutilaram e duas que tentaram o suicídio. “Todo este sofrimento era prevenível”, defende Apostolos Veizis, da Unidade Médica de Apoio dos Médicos Sem Fronteiras na Grécia, em entrevista ao Expresso. Tudo isto a que recusa chamar de crise de refugiados mas, sim, uma “crise criada pela política”.

Desde 2008 que trabalha com migrantes e refugiados e diz ter a sensação de que o que está a acontecer na Grécia - quer nas ilhas, quer no continente - é algo “irreal”. “Parece que estou a falar de Marte ou de um outro planeta qualquer.”

Há um ano o Expresso visitou Moria, na ilha grega de Lesbos. Era o maior campo de refugiados da Europa, viviam ali cerca de oito mil pessoas. Hoje são quase 19 mil. Como estão as coisas atualmente?
Isto é tudo uma piada: é o quarto ano, o quarto inverno, em que vivemos em condições terríveis. O número de pessoas continua a aumentar e o que vemos sistematicamente é que não há resposta às necessidades, não há dignidade. Nos últimos dois meses morreram cinco pessoas em Lesbos: uma criança de nove meses devido a desidratação (não teve acesso aos cuidados médicos), duas mulheres num incêndio dentro dos contentores onde viviam, um bebé enquanto brincava, um menor desacompanhado que foi esfaqueado dentro de uma zona designada como segura. Estas são mortes que podiam ter sido evitadas. Isto acontece porque as pessoas são obrigadas a viver nestas condições. As pessoas morreram porque este é um sofrimento infligido.

Anna Pantelia/ imagem cedida pelos MSF

Quantas crianças são atendidas diariamente na clínica dos Médicos Sem Fronteiras junto ao campo de Moria? E quais os principais problemas de saúde?
São mais de 100 crianças todos os dias, a maioria com infeções respiratórias, doenças de pele e diarreia, doenças completamente relacionadas com as condições de vida no campo. Temos recebido, também, casos muito mais graves. Há 117 pessoas com problemas como diabetes, doenças cardíacas, cancro, traumas... E estes casos não podem ser seguidos no hospital de Lesbos menos ainda pela nossa equipa, são coisas muito especializadas. Já pedimos que sejam retirados da ilha e levadas para o continente ou para outro país, caso o tratamento não seja possível na Grécia.

E depois há uma série de problemas ao nível da saúde mental.
Devido às más condições e à violência e à falta de segurança nos campos, estamos a ver uma deterioração brutal da saúde mental das crianças, e não só. Nos últimos três meses, atendemos 20 crianças (cerca de metade com menos de seis anos) que se mutilaram e duas tentaram matar-se. Há cada vez mais crianças que se isolam, que não querem brincar ou falar. Arrancam cabelos ou batem com a cabeça nos contentores. O mais novo que atendemos tinha dois anos. Temos miúdos que dizem ao psicólogo que preferem morrer do que viver. E isto é algo que não vemos muitas vezes nos nossos projectos [os MSF estão presentes em dezenas de países, alguns em África e Médio Oriente]: as crianças quererem morrer devido às condições de vida. Claro que há problemas relacionados com os países de origem e até com a viagem até à Europa, mas grande parte das doenças mentais que hoje observamos tem origem nas condições de vida nas ilhas gregas.

Anna Pantelia/ imagem cedida pelos MSF

Anteriormente falou de sofrimento infligido. Pode explicar o que queria dizer?
De certa forma, parece-nos que se levantam cada vez mais barreiras que tornam a vida das pessoas cada vez mais difícil. E o sofrimento não acaba. É crónico e não há esperança. A maioria das pessoas está nos campos de refugiados entre seis meses e três anos, sempre a ir para as filas durante horas esperar pela comida, a dormir em tendas de verão, as crianças não vão à escola… É uma realidade que ninguém pode descrever, é muito negra. É uma realidade negra que está a ser criada por uma escolha política da União Europeia e da Grécia. Esta não é uma crise de refugiados, é uma crise criada pela política.

Como assim?
A quantidade de dinheiro alocada à Grécia para a gestão dos migrantes e refugiados é enorme, entre 2015 e 2020 foram cerca de 2,2 mil milhões de euros. O problema é que a União Europeia acha que solidariedade é apenas enviar dinheiro. Ao mesmo tempo está a investir numa política de contenção de pessoas na Grécia e na Turquia, vendo as ilhas gregas como uma fronteira externa. Estamos a falar de pessoas que fogem do Afeganistão, da Síria, da Palestina e do Congo, que são apresentadas como migrantes económicos quando na realidade têm o perfil completo de refugiados. O problema é que nos últimos anos temos notado uma retórica muito má, o Governo fala de uma invasão e dos perigos que estas pessoas representam para o país e isso não ajuda em nada na forma como são depois estigmatizadas pelas autoridades.

Mas não é apenas só esta retórica.
Não, há medidas, procedimentos e leis que levantam ainda mais barreiras. Para mim é claro que nos últimos quatro anos de implementação do acordo com a Turquia, a União Europeia está apenas a olhar para números e se esquece que por trás estão crianças, mulheres e homens. Tiram-lhes a dignidade e vemos todo o sofrimento desnecessário, as mortes que poderiam ser prevenidas. A União Europeia e o Governo grego não assumem os seus papéis e é uma vergonha que ainda tenhamos de falar nisto em 2019: é uma imagem negra. Numa altura em que já só se pensa no Natal e no novo ano, quando as crianças de todo o mundo estão a escrever cartas ao Pai Natal a pedir um presente, as crianças de Moria estão a escrever cartas a pedir sobrevivência.

Anna Pantelia/ imagem cedida pelos MSF

Acredita, então, que falta vontade para resolver o problema? Acha que se a UE e o Governo grego quisessem conseguiriam gerir a situação?
Há uma falta de vontade política em gerir as condições de vida destas pessoas, sem qualquer dúvida. O que posso dizer é que, se houvesse vontade política de fazer alguma coisa por estas pessoas, o cenário não seria aquele que descrevi. Não existiria cenário. A UE tem orgulho em dizer que disponibiliza bens e dignidade em centenas de campos por todo o mundo, mas não consegue fazer o mesmo para as 42 mil pessoas nas ilhas gregas, apesar de ter todos os recursos necessários para satisfazer as necessidades destas pessoas.

De quem é a responsabilidade destas milhares de pessoas estarem barradas na Grécia?
É fácil apontar apenas o dedo ao Governo grego, mas acredito que toda a sociedade europeia é responsável porque sabe o que se passa e é preciso fazer algo. Como sociedades europeias, devemos desafiar os nossos governos a agir. E precisamos de nos vacinar contra a indiferença: é um problema que também é nosso, sobre o qual precisamos de fazer alguma coisa.

Enquanto sociedade, o que pode ser feito?
Temos de dizer aos governos que estas pessoas precisam de passagem segura e legal para a Europa, e isto já vai reduzir o número de mortes desnecessárias e o sofrimento. Não precisamos de investir em muros ou no controlo de fronteiras. Se esse dinheiro fosse usado em proteção, não precisavámos hoje de estar a falar sobre isto.

Anna Pantelia/ imagem cedida pelos MSF

Em julho, realizaram-se eleições na Grécia. O Nova Democracia, um partido de centro-direita, venceu. Até então, a crise tinha sido gerida por um Executivo de coligação à esquerda, liderada pelo Syriza. O que mudou na política de acolhimento e integração das pessoas que chegam à Grécia?
A 11 julho, o novo Governo decretou que às novas entradas não fossem atribuídos números de segurança social, que permitiria às pessoas terem acesso em qualquer hospital a tratamentos e prevenções de doenças. Estamos a falar neste momento em mais de 50 mil pessoas em todo o país que não tem esse número e, por isso, só conseguem ser atendidas em hospitais públicos em casos de emergência.

E, entretanto, no começo do ano, também estão previstas alterações legislativas.
Sim, a 1 de janeiro entra em vigor a nova lei de proteção internacional, que prevê, por exemplo, que situações de stress pós traumático não sejam consideradas como vulnerabilidade [uma classificação permite alguns cuidados extra e acesso prioritário]. Além disso, a vulnerabilidade de determinada pessoa, mesmo em casos de vítimas de tortura e violência, só pode ser certificada por um hospital civil ou militar. Outros atores no terreno deixam de ter autorização para o fazer. No entanto, não há médicos treinados ou centros preparados para tratar estes casos mais frágeis. Aliás, são poucas as organizações que têm experiência a lidar com isto e que sabem fazê-lo.

Sente que de alguma forma, nos últimos meses, têm sido colocadas barreiras ao trabalho humanitário?
Acho chocante o que se tem visto na Europa sobre a criminalização da solidariedade. Sentimos isso na nossa intervenção no Mediterrâneo e, pontualmente, vemos as autoridades gregas a falar sobre a responsabilidade das ONG no que está a acontecer e a acusarem-nos de estarmos a colaborar com traficantes. Mas, até agora, na Grécia, não há barreiras ao nosso trabalho. Temos o tal discurso desfavorável mas, na prática, não há impedimentos.