Internacional

May significou May e pouco mais

“Brexit significa Brexit”, repetia a primeira-ministra cujo estilo sóbrio muitos apreciaram no rescaldo do referendo de 2016. Sai ao fim de três anos, sem ter conseguido tirar o Reino Unido da União Europeia e tendo deixado esse assunto sequestrar o seu mandato

YVES HERMAN/REUTERS

Quando ganhou sem dificuldade a eleição para líder do Partido Conservador, há três anos, Theresa May era vista como a adulta que estava mais à mão. David Cameron demitira-se depois de tudo arriscar (e perder) num referendo sobre a permanência na UE, cujas consequências ainda marcam a vida política no Reino Unido.

Entre os putativos candidatos a suceder-lhe estavam nomes do lado vencedor nessa disputa, como Boris Johnson e Michael Gove. O primeiro foi traído pelo segundo, que passou de provável diretor de campanha a adversário, dizimando Johnson na sua verve acutilante e levando-o a não avançar. Numa disputa com mais três figuras de escassa relevância, a final foi entre May e Andrea Leadsom. Nem chegaram a ir a votos: Leadsom desistiu por ter caído mal a insinuação de que seria melhor primeira-ministra por ter filhos e, logo, mais em jogo no futuro do país do que May (que não pôde tê-los).

Mesmo sem a inépcia cruel de Leadsom, é de crer que May tivesse ganho. Então ministra do Interior, com opiniões duras sobre o controlo da imigração (embora tivesse falhado a meta de redução de entradas fixada por Cameron), era vista como determinada e sem tempo nem feitio para disparates. Filha de um vigário de Sussex, fora educada na escola pública, ao contrário de Cameron, Gove ou Johnson, meninos de famílias ricas e perfil diletante, e do ministro das Finanças George Osborne, filho de um baronete, que May exonerou num ápice e que hoje é seu forte crítico enquanto diretor do jornal “Evening Standard”.

Campos de trigo para sempre

A nova primeira-ministra chamou Gove, Johnson e Leadsom para ministros, até para tê-los debaixo de olho. No sistema britânico, que dá grande independência aos deputados (eleitos em círculos uninominais, ou seja, em nome próprio), não convém ter muitos adversários à solta.

Não há em May vestígio da visão lúdica da política do homem que vai suceder-lhe esta quarta-feira à tarde. Se Johnson se orgulha de ter sido membro do exclusivo Bullingdon Club, que reúne estudantes de Oxford à roda da mesa e dos copos (com frequente destruição dos restaurantes que os recebem), May indicou numa entrevista, em 2017, que a maior travessura que fizera fora correr por campos de trigo sem autorização do respetivo proprietário. E a opinião pública interrogou-se se seria pior alguém que fez coisas piores e não confessou ou alguém que de facto nunca ousou nada de mais emocionante.

Se hoje se aponta à governante demissionária cinzentismo e falta de jogo de cintura (não obstante uma entrada na conferência do partido ao som de “Dancing Queen”, dos ABBA), em 2016 o seu estilo era uma quebra ansiada com o antecessor meio dândi, que deixou o poder cantarolando em Downing Street, esquecido de que o microfone estava ainda ligado e aparentando indiferença perante o caos em que lançara o Reino Unido.

Consciência social

May vinha, pois, apanhar os cacos deixados pelos meninos rabinos, fossem derrotados irresponsáveis ou vencedores de uma campanha baseada em mentiras. E acabar a bagunça que tinham criado. “Brexit significa Brexit”, martelou “n” vezes a mulher que votara para o país ficar na UE.

Ao ser empossada frisou que o partido se chama Conservador e Unionista, evocando “a ligação preciosa entre Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda do Norte”. Pelo menos a norte e na ilha vizinha o estado desses laços é hoje mais frágil graças à magna questão europeia. Escoceses e norte-irlandeses votaram em 2016 contra a saída da UE e a indefinição prolongada turva-lhes o horizonte.

A UE não foi meiga com May, que nesta imagem saúda o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker
Yves Herman

O primeiro discurso de May no poder sugeriu um corte com o pendor mais liberal do Executivo anterior, amigo de privatizações e ávido de substituir o Estado paternalista por uma “Grande Sociedade”, expressão de Cameron que não se materializou cabalmente. A sucessora falou de “justiça social” e elogiou medidas progressistas do Governo cessante, como a legalização do casamento homossexual.

May repudiou a injusta diferença de oportunidades e até de esperança de vida para “quem nasce pobre”, a dureza do sistema judicial para “quem nasce preto”, a improbabilidade de chegar à Universidade para um “rapaz branco de classe operária” ou o salário inferior que uma mulher recebe num emprego igualzinho ao do homem que trabalha ao seu lado.

Consciência social, portanto, vinda da força política que impunha há seis anos medidas de austeridade. Proximidade com o cidadão comum defendida por uma líder que anos antes alertara os companheiros para o perigo de se deixarem ver como o “nasty party” (partido malvado).

E tudo o Brexit levou

May acabaria por ser tão afetada (e afastada) pela questão europeia como os seus antecessores Ted Heath (primeiro-ministro quando o Reino Unido aderiu à UE, logo fez um referendo sobre a permanência), Margaret Thatcher (corrida do Governo pelos seus, após 11 anos férreos, por ser demasiado eurocética), John Major (criticado por excessivo europeísmo e hoje feroz adversário de um Brexit sem acordo) ou Cameron (aniquilado pela consulta popular que, acreditou, iria calar a ala radical do partido).

Momento descontraído com Angela Merkel e António Costa, durante um Conselho Europeu
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De início a primeira-ministra negou pressas em invocar o artigo 50 do Tratado de Lisboa (que rege a saída de Estados-membros da UE). Queria primeiro negociar uma “saída sensata e ordeira”. O problema é que os 27 decidiram que não encetariam negociações antes dessa invocação, que tem o efeito de pôr a contar um prazo de dois anos para chegar a acordo, à falta do qual obriga à partida desordenada.

O artigo 50 foi invocado a 29 de março de 2017, não sem antes May ter traçado as suas linhas vermelhas. O Reino Unido sairia do mercado único e da união aduaneira com a UE, não haveria fronteira reposta entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) e a República da Irlanda (membro da UE), e o objetivo de Londres seria manter relações comerciais com todos os parceiros, reconhecendo ainda direitos mútuos aos cidadãos europeus no Reino Unido e vice-versa.

Algumas destas linhas vermelhas (sobretudo as do comércio livre) eram incompatíveis com as quatro liberdades indivisíveis do mercado único europeu: circulação de pessoas, capitais, bens e serviços. A invocação do artigo 50 nestas condições gerou impasses que não foi possível soolucionar até ao fim do prazo de saída, a 29 de março deste ano. May foi forçada a dois humilhantes pedidos de adiamento, primeiro para 12 de abril, presentemente para 31 de outubro.

Uma eleição desastrosa

Duas semanas depois de informar a UE da intenção de sair, May convocou legislativas antecipadas, que não tinham de acontecer até 2020 e que repetidas vezes descartara. Explicou que o fazia “com relutância”, após reflexão num passeio com o marido Philip (conselheiro imprescindível) pelas montanhas galesas de Snowdonia. O motivo era a “divisão em Westminster”, que punha “em risco a capacidade de fazer um Brexit com êxito”.

May criticou os trabalhistas e liberais por não apoiarem o Governo, isto é, por fazerem o trabalho da oposição numa democracia. “Se não realizarmos eleições, os jogos políticos continuarão”, vaticinou. E continuaram, mesmo com a ida às urnas, mas é do seu partido que tem mais razões de queixa.

Uma campanha desastrada da primeira-ministra, que se recusou a participar em debates, acusações de oportunismo na chamada dos britânicos às urnas (as sondagens sorriam aos conservadores e o líder trabalhista Jeremy Corbyn era visto como inelegível, por vir da esquerda mais radical do partido) e a afabilidade do líder da oposição no terreno uniram-se para uma noite triste em que May reconheceu ter “vertido uma lágrima”. Os conservadores perderam a maioria absoluta herdada de Cameron e May só se aguentou no poder graças a um acordo com o Partido Democrático Unionista norte-irlandês, ao preço de mil milhões de libras (1120 milhões de euros) para aquela região.

Theresa May ocupou durante pouco mais de três anos o n.º 10 de Downing Street
Peter Summers/GETTY

O diagnóstico de Osborne no “Standard” foi ímpio. May era, doravante, “uma morta ambulante”. A juntar ao quebra-cabeças europeu, um incêndio na torre Grenfell (prédio de habitação social em Londres, onde o fogo matou 72 e que a primeira-ministra tardou em visitar, por alegadas “razões de segurança”, quando a rainha Isabel II já estava junto dos sobreviventes), o escândalo Windrush (ameaça de expulsão de imigrantes instalados legalmente no Reino Unido nos tempos do Império) ou a confusão no novo esquema de pagamento de prestações sociais (com atrasos graves para as famílias beneficiárias) apagaram a pátina de compreensão e proximidade que procurara dar-se. May teve ainda de lidar com o envenenamento de um ex-espião russo em Salisbury. Mas foi a Europa que desgraçou a sua governação.

O acordo maldito

As negociações com os 27 consumiram a energia do Executivo até final de 2018. Em Bruxelas estranhava-se o imobilismo de May, mais inclinada a perguntar que cedências estavam os outros dispostos a fazer do que a indicar claramente um rumo (que nunca soube definir). Em entrevistas e declarações públicas, desdobrava-se em chavões de pouca chispa e substância.

À perda de maioria absoluta somava-se a inexistência de unanimidade na bancada conservadora. Pelo meio demitiram-se ministros, mormente Boris Johnson, cujas gafes e tiradas inoportunas embaraçavam o país, mas também David Davis, a quem May entregara a pasta do Brexit. “O mandato de Theresa May acabou”, sentenciou então a sibilina Leadsom, que era (imagine-se!) líder do grupo parlamentar e responsável pelas relações entre o Executivo e a Câmara dos Comuns. Com amigos destes...

May tornou-se alvo dos europeístas sem por isso ganhar o favor dos eurocéticos
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O acordo firmado com a UE em novembro de 2018 gerou fortes críticas. Para os europeístas, nada serviria que não fosse reverter o referendo. Para os eurocéticos, o documento era demasiado brando, isto é, não propiciava o “corte claro” por que ansiavam, independentemente dos custos económicos e sociais. O maior escolho era o “backstop”, uma solução de recurso exigida pelos parceiros europeus para garantir que não voltaria a haver fronteira física entre as Irlandas. A disposição estipula que caso não haja um acordo comercial que dispense essa fronteira (note-se que o Reino Unido decidiu sair não só da UE como do mercado único e da união aduaneira), o país terá de ficar, no seu todo, em alinhamento regulatório com os 27 e a Irlanda do Norte sujeita a regras do mercado único. “Traição!”, bradaram os adeptos da saída. “Divisão!”, temeram os unionistas.

De adiamento em adiamento até à derrota final

Cedo se percebeu que o Parlamento não ia aprovar o acordo, como de facto aconteceu em três tentativas entre janeiro e março deste ano. Em dezembro os deputados tinham condenado o Executivo por “desobediência ao Parlamento”, com votos conservadores, por não divulgar os pareceres jurídicos que encomendara sobre a saída da UE e que provavam que só era possível sair do “backstop” com autorização dos restantes Estados-membros. “Prisão!”, exclamaram os eurocéticos.

May adiou a votação do acordo, venceu uma moção de censura interna e outra nos Comuns, tentou renegociar partes do “backstop”, prometeu não disputar as legislativas de 2022, mas o seu era já, como acusou Corbyn, um “Governo zombie’”. Vários deputados abandonaram o partido, o Executivo também perdeu membros e o plano de saída da UE foi chumbado, vendo-se a governante forçada a fazer o que muitas vezes garantira que não faria: pedir à UE um adiamento do Brexit.

A primeira-ministra indicou 30 de junho como nova data de saída e até prometeu não governar depois disso se o país não abandonasse a EU. Acontece que os 27 só aceitaram a prorrogação até 12 de abril, para proteger as eleições europeias. Novo fracasso doméstico levou May de mão estendida a Bruxelas, onde foi autorizado novo adiamento mas para 31 de outubro, o que obrigou o Reino Unido a eleger eurodeputados em maio e May a quebrar a garantia que dera. Isto serviu de balão de oxigénio a Nigel Farage, o rei dos eurocéticos, cujo novíssimo Partido do Brexit venceu, como cinco anos vencera o (então seu) UKIP, Partido da Independência do Reino Unido.

Incapaz de chegar a consensos com o Partido Trabalhista (cuja posição sobre o Brexit tem sido de incrível ambiguidade), acossada por candidatos à sucessão e ridicularizada pelo mundo fora, May informou em março que já não seria ela a negociar a relação futura entre os britânicos e a UE e em maio — com voz embargada a denotar menos fraqueza do que entrega sincera ao cargo e ao país (e que, sublinhou, não teria sido tão comentada se vinda de um homem) — que abandonava a liderança dos conservadores e do Governo. Nas europeias o partido ficou em quinto lugar, com 9,1%, atrás de Farage, trabalhistas, liberais e até verdes.

O anúncio desencadeou a corrida que culminou, terça-feira, com o anunciado triunfo de Boris Johnson. O último marco do mandato de May foi a visita de Estado de Donald Trump, em que o Presidente dos Estados Unidos não se coibiu de criticá-la por não ter seguido os seus conselhos nas conversações com Bruxelas e em elogiar os aspirantes à sucessão.

Doravante, a ex-primeira-ministra (a partir de quarta à tarde) pretende manter-se como deputada pelo círculo de Maidenhead, sem incomodar Johnson. Dizem os amigos que Philip e ela pouca vida têm além do partido, passando o fim-de-semana em atos políticos. É provável que May (como Major, Tony Blair, Gordon Brown ou Cameron) decida não aceitar a tradicional elevação à Câmara dos Lordes.

Afinal, foi como comum que a segunda primeira-ministra do Reino Unido sempre se apresentou. E o seu mandato em tempos singulares, mau-grado alguma bonança económica e uma oposição que nunca capitalizou por completo os fracassos da governante, acabou por pouco deixar de assinalável.