Internacional

Elogios ao “sentido de Estado” e medo do homem que se segue: a última intervenção de Theresa May como primeira-ministra

Elogios de quem sempre a criticou, muitas críticas ao seu sucessor e um sentido de missão falhada difícil de dissipar. Theresa May respondeu esta quarta-feira aos deputados, como primeira-ministra, pela última vez. O Brexit continua a ser o enorme novelo que não se desata e os parlamentares continuam tão reticentes como sempre estiveram em aceitar a possibilidade da saída sem acordo com a UE

House of Commons - PA Images

“Os ‘sim’ para a direita, os ‘não’ para a esquerda. Ganham os ‘não’! Ganham os ‘não’!” Esta frase do speaker do Parlamento, John Bercow, ecoou dezenas de vezes pela centenária Câmara dos Comuns durante os três anos de Governo de Theresa May. Moções, emendas, votos de censura, votos de confiança e as três derradeiras votações contra o acordo de May uma delas a maior alguma vez enfrentada por um primeiro-ministro naquela Câmara fizeram da primeira-ministra uma personagem trágica: resiliente ao ponto da intransigência, desprezada até pelos seus naturais aliados e progressivamente desgastada.

Esta quarta-feira, na sua última intervenção no Parlamento enquanto chefe do Executivo, foi por entre estrondosos aplausos que se ergueu para falar. Quase ninguém, mesmo entre os bancos opositores, deixou de sublinhar o seu “compromisso” com a negociação do Brexit.

Até Jacob Rees-Mogg, o mais eurocético entre os eurocéticos, promotor de uma moção de censura interna no Partido Conservador, realçou em May “o serviço público e a cortesia”. Jeremy Corbyn, líder da oposição trabalhista, elogiou o seu “sentido de dever público” e perguntou logo a seguir se May, mesmo na retaguarda, ia tentar dominar o seu “impulsivo sucessor”.

Boris Johnson, que ainda esta quarta-feira será oficializado como primeiro-ministro, esteve bastante presente na Câmara, apesar de não fisicamente. Figura em primeiro lugar nas listas das preocupações de muitos deputados, que querem impedir um Brexit sem acordo.

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May não parece ter ficado comovida com o elogio com que o líder trabalhista abriu a sua intervenção. Começou a sua resposta com duras críticas: “Francamente, acho que devia ter vergonha de si mesmo”, por ter votado contra um acordo para o Brexit, disse May, com Corbyn mesmo à sua frente. A partir daí não parou: falou das promessas do trabalhista de acabar com a dívida dos estudantes, dos compromissos com a Defesa que agora já não parece assumir.

“Como alguém que sabe quando o seu tempo chega ao fim, penso que também sabe que é altura de se afastar”, rematou May. Ian Austin, antigo parlamentar trabalhista, agora independente, junta-se a May para pedir o afastamento de Corbyn e diz que a maioria dos trabalhistas está com ele.

Parlamento não quer ser suspenso

Da Escócia chega a primeira pergunta difícil, também porque bastante concreta, sobre o futuro de May como deputada. É de Ian Blackford, líder parlamentar do Partido Nacional Escocês (SNP): “O SNP já apresentou uma moção antecipada que pede que o Parlamento permaneça em funções até novembro. Irá apoiar esta moção como deputada?”.

May diz que está, como sempre esteve, empenhada em garantir o melhor futuro possível para a Escócia. Só que a pergunta de Blackford ficou sem resposta. Se nada acontecer até 31 de outubro, o Reino Unido sai da UE sem acordo e as férias parlamentares terão evitado horas de discussão sobre o assunto, “acelerando” um Brexit desordenado que Boris Johnson não renega mas que a maioria dos deputados quer parar com o seu voto.

Para haver um voto tem de haver um Parlamento em funcionamento. O sucessor de May não excluiu a hipótese de suspender a atividade da Câmara dos Comuns para evitar que esta trave a saída da UE, o que suscita dúvidas constitucionais.

Sem dar réplica a Blackford, May não deixou de defender que “Esta Câmara dos Comuns está, e bem, no centro” dos “tempos políticos extraordinários” que o país atravessa. Frisou ainda “a ligação vital entre cada membro desta Câmara e as comunidades, os Comuns a quem representamos”. Tal é, rematou, “a pedra-de-toque da nossa democracia parlamentar e da nossa liberdade”. A demissionária vai continuar deputada pelo círculo de Maidenhead.

Seguiram-se perguntas de outros deputados sobre problemas mais próximos das áreas pelas quais foram eleitos, com May a prometer apenas que os organismos estatais darão resposta. É mais uma esperança do que algo que possa mesmo controlar depois de abandonar Downing Street.

Adeus ao número 10

Pouco depois da sessão parlamentar, May fez um breve discurso à porta do n.º 10, até agora sua residência oficial, antes de se dirigir ao palácio de Buckingham para apresentar a demissão à rainha. Desejando êxito a Johnson, afirmou que “há muito por fazer”, sobretudo concluir o Brexit “de uma forma que funcione para todo o Reino Unido”.

Antevendo um “grande futuro” ao país, agradeceu aos britânicos a fé que nela depuseram a a hipótese de os servir e teve uma palavra de reconhecimento para com o marido, Philip, presente a seu lado. E fez saber que continuaria, como deputada a “fazer tudo em nome do interesse nacional”.

A demissionária não ignorou o facto de ter sido apenas a segunda mulher em 77 primeiros-ministros do Reino Unido. “Espero que todas as meninas que viram uma mulher primeira-ministra saibam que não há limites para o que podem alcançar”, sentenciou.