O Dia da Independência trouxe a canícula, com as temperaturas a baterem recordes até no Alasca, onde chegaram aos 87 fahrenheit (30 graus centígrados), uma espécie de recompensa tardia por um Inverno que se arrastou Primavera fora.
Dada a emergência, pela manhã as televisões ofereciam conselhos sobre hidratação e protectores solares, principalmente para os mais novos, recordando a importância de renovar a aplicação ao longo do dia. O canal ABC levou a coisa muito a sério e teve pais e filhos no estúdio a “explicarem” como se faz.
Um especialista supervisionava e garantia que a tarefa devia ser entregue aos petizes, responsabilidade que os ajudará a ganhar consciência para o problema das queimaduras. Idade para começar a fazê-lo? Dez anos.
Ainda naquele canal, houve mais momentos de “news to use”, com a “food editor” da revista “People” a conduzir uma prova de “junk food”, ou seja, a dizer aos americanos quais as melhores batatas fritas, cachorros quentes e condimentos para devorar ao sol. E não vá a garganta secar, a jornalista jurava que a água gaseificada San Pellegrino Essenza, com sabor a tangerina e morangos selvagens, é imperdível.
Tamanhos preparativos justificavam-se para a maior parte da população, afinal de contas a festança do 4 de Julho faz-se ao ar livre, do vulgo churrasco nos quintais ou nos parques comunitários, aos concertos grátis um pouco por todo o país.
Na Nova Inglaterra, por exemplo, os mais endinheirados seguem para os seus “cottages”, propriedades à beira dos lagos que proliferam em estados como Massachussets ou New Hampshire. Os outros dirigem-se para as praias que, apesar dos extensos areais, oferecem águas gélidas para deleite das focas, que parecem fazer pirraça sempre que surgem à tona.
Ainda sobre as particularidades do Atlântico Norte, a ABC, que aparentava ter tirado a manhã para assustar a população, emitiu uma peça sobre como reagir a um ataque de um tubarão, fenómeno frequente nesta altura do ano, que incluiu um intrépido repórter na água a simular como se faz (um soco no olho é a melhor maneira de afastar o animal).
Armas não, obrigado
Em terra firme, na baixa da cidade de Boston, junto à Esplanade, um parque nas margens do rio Charles, as pessoas começaram a juntar-se na noite de véspera para um espectáculo da cantora Queen Latifah. Muitas delas pernoitaram, de olhos postos num lugar privilegiado para assistirem no dia seguinte ao “Boston Pops”, um festival de fogo-de-artifício que atrai todos os anos em média quase um milhão de pessoas.
Além do calor, a segurança foi o outro desafio permanente, pois há muito que a ameaça terrorista dita que qualquer ajuntamento requer atenção extra. Grosso modo, multiplicavam-se dois tipos de avisos, um com a lista de objectos permitidos, o outro com a dos expressamente proibidos.
Na primeira contavam-se, entre outros, cobertores com menos de três metros de comprimento, cadeiras desdobráveis e pequenas arcas térmicas sem rodas. Na segunda, destacavam-se mochilas, bebidas alcoólicas, vidro, drones e, por fim, algo muito americano: armas.
O espírito securitário sentiu-se particularmente em Washington. Na capital, o chefe de Estado Donald Trump preparou “as maiores celebrações da história”, com tanques estacionados em redor do memorial do antigo líder Abraham Lincoln, onde o magnata discursou ao final da tarde, e festivais aéreos com caças, bombardeiros e até o Air Force One, o avião presidencial.
Casa Branca e Pentágono recusaram revelar o preço de tamanha produção, o que gerou críticas. “Embora um tributo aos nossos militares seja uma boa ideia, o uso das forças armadas para ajudar a enfeitar a intervenção do presidente é um abuso de poder”, explicou ao Expresso, na quarta-feira, Jeremy Buttler, CEO do organismo “Iraq and Afghanistan Veterans of America”.
Quezílias à parte, os festejos começaram com a homenagem a um veterano da Segunda Guerra Mundial, Charles E. McGee. Aos 99 anos, o coronel da força aérea, que executou 409 missões contra as forças nazis, caminhou às dez da manhã de fato e gravata entre a multidão, apesar dos 35 graus centígrados.
“Obrigado pelo seu serviço”, ouviu-se repetidamente. O ancião agradecia e parava amiúde para beijos e abraços. Quando via um menor fazia-lhe sempre a mesma pergunta: “Como vai a escola?”.
McGee é símbolo de uma América em mudança. Membro da unidade
Tuskegge, composta exclusivamente por pilotos negros, lutou além-fronteiras pela liberdade, embora no país de origem fosse discriminado devido à cor da pele.
“Trump-teleponto”
A meio do dia, nem a notícia de um sismo na Califórnia atrapalhou os planos da National Independence Day Parade, que juntou civis e militares numa das artérias principais, a Constitutional Avenue. A confirmação de que não existiriam vítimas, apesar da intensidade do abalo (6.4 na escala de Richter) e das mais de 50 réplicas, permitiu que tudo continuasse inalterado.
Sinal disso mesmo foi a presença, pela primeira vez na história do evento, do presidente dos Estados Unidos, na categoria de comandante em chefe das Forças Armadas e da Guarda Nacional. O protagonista político delirou.
Cerca de três horas depois, por volta das 18h30 (23h30 em Lisboa), quando subiu ao palco para o discurso oficial, a ansiedade colectiva disparou, esperando-se que as críticas ouvidas durante a semana, de partidarização de um momento apolítico, não se confirmassem.
“Historicamente, os presidentes mantêm uma certa distância no Dia da Independência para evitar qualquer acusação de sectarismo. Mas se os comícios de Trump servem de referência, temo que o seu discurso venha a dividir e a polarizar ainda mais, algo que contraria o espírito deste feriado”, alertara Jeremy Buttler.
Rodeado de painéis transparentes à prova de bala, Trump evitou polémicas e falou sempre num tom conciliatório, lembrando os feitos dos pais fundadores e da sua Revolução. Mencionou as ambições do programa espacial, do empreendedorismo das gentes da terra, “solidárias sempre”, e da “profunda religiosidade que guia a Nação”.
Num dos momentos altos, disse: “Hoje, juntamo-nos como Nação unificada que somos. Celebramos a nossa história, o nosso povo e os nossos heróis que orgulhosamente defendem a nossa bandeira - os bravos homens e mulheres das Forças Armadas Americanas. Juntamo-nos em liberdade para recordar que todos nós partilhamos a mesma cultura. Juntos, somos parte de uma das melhores histórias jamais contadas - a História da América”.
“USA! USA! USA!”, gritava a multidão. Rendido e emocionado, Buttler deixava um desabafo por telefone: “Gosto da versão Trump-teleponto. Bem melhor do que a Trump-Twitter”.
No final da noite, os fogos-de-artifício na Capital e na cidade de Nova Iorque disputaram a supremacia, acabando esta última por vencer, pois juntou mais gente (cerca de 3 milhões de pessoas).
Por falar em números, um cálculo da “National Restaurant Association”, revelado pela Fox News, indicou que durante o feriado teriam sido gastos mais de 65 milhões de dólares em cachorros quentes, 90 milhões em pacotes de batata frita e 160 milhões em melancias.
Quanto às bebidas, desconhece-se se os americanos seguiram o conselho da tal editora da revista “People” sobre água gaseificada com sabor exótico, mas soube-se que despenderam perto de mil milhões de dólares em cerveja.