Internacional

Turquia. À espera da contagem dos votos

Mais de 57 milhões de eleitores vão eleger quase 1000 presidentes de câmara, e 30 presidentes de outras tantas áreas metropolitanas

Exatamente 25 anos depois de Recep Tayyip Erdogan, o atual presidente da Turquia, ter vencido a sua primeira eleição, no distante dia 27 de março de 1994, quando conquistou a câmara municipal de Istambul, a Turquia vai este domingo a votos para eleições locais – o último escrutínio até ao centenário da República Turca em 2023.

Mais de 57 milhões de eleitores vão eleger quase 1000 presidentes de câmara, e 30 presidentes de outras tantas áreas metropolitanas. Apesar de serem eleições autárquicas, o todo-poderoso Erdogan – que controla de forma absolutista o país, lançou-se à estrada como se de um plebiscito nacional se tratasse, fazendo 2 ou 3 comícios por dia nas últimas 3 semanas pelos quatro cantos do país. Ao abrigo das mudanças constitucionais aprovadas quando a Turquia referendou um sistema presidencialista, o presidente reteve a presidência do seu partido (AKP, Justiça e Desenvolvimento), e abordou estas eleições como se fossem as últimas e decisivas – aliás como sempre faz.

Erdogan sabe que ele mobiliza mais do que o seu partido, e que as eleições locais são importantes para manter a base eleitoral satisfeita – é através das autarquias que o AKP e o presidente chegam mais diretamente ao eleitorado, e é nos municípios que residem muitos dos contratos que mantêm a clique de homens de negócios que sustenta Erdogan. Mas a estratégia é arriscada - o voto pode ser considerado um plebiscito ao presidente, que não terá de ir a eleições nos próximos 4 anos.

O AKP (conservador e islamista) continua aliado aos nacionalistas do MHP, enquanto a oposição é representada pela esquerda republicana kemalista (laica), aliada ao Partido Bom, uma dissidência do MHP. Uma vez mais, como em quase todas as eleições recentes, a enfraquecida oposição tem esperança de abalar o aparentemente imbatível Erdogan. O AKP ganhará certamente uma larga maioria de autarquias, mas poderá perder algumas das grandes regiões metropolitanas, entre os quais a capital Ancara.

A verdade é que as maiorias absolutas do AKP parecem ser um marco do passado, e desde 2015 que Erdogan precisa da bengala dos nacionalistas para continuar a senda de vitórias eleitorais que dura há já 25 anos. Nota-se por isso algum nervosismo nas hostes governamentais, que apesar de dominar por completo os media, todo o establishment, e os fundos públicos, que foram utilizados descaradamente na campanha eleitoral do AKP, denotam estranhamente que estarão numa posição de fraqueza.

Talvez por isso, Erdogan usou uma retórica cada vez mais populista e agressiva ao longo da campanha. Utilizou até à exaustão nos seus comícios o massacre na Nova Zelândia, transmitindo em direto as imagens chocantes do assassino a chacinar as vítimas no interior da mesquita, para acenar com a bandeira de defesa do islão e da islamofobia. “Porque é que o Ocidente e os media ocidentais estão silenciosos? Porque foram eles que prepararam e enviaram o manifesto [do extremista anti-islâmico]”, acusou Erdogan. Depois foi endurecendo as acusações contra todos os opositores, que chama de “traidores da pátria” e de “apoiantes do terrorismo” - isto porque o partido curdo (HDP), que tem sido vítima de uma perseguição sem limites por parte das autoridades, que o consideram um porta-voz dos separatistas curdos do PKK, decidiu só apresentar candidatos na zona sudeste (de maioria curda) e apelar ao voto útil contra o AKP no resto do país.

Por isso o presidente ameaça “destituir todos os autarcas com ligação ao terrorismo” – de facto, quase todos os cerca de 100 presidentes de câmara que o HDP elegeu nas últimas eleições locais já foram detidos, ou demitidos, com o Governo central a assumir a gestão das respetivas autarquias. A mensagem é clara: “Kemal Kiliçdaroglu [líder do principal partido da oposição, esquerda laica] é um cavalo de Troia para os terroristas do PKK”, disse na campanha Suleyman Soylu, o ministro do Interior. Também Mevlut Cavusoglu, o ministro dos Estrangeiros, acusou os candidatos da oposição de “terem feito uma aliança como todos os terroristas, separatistas e traidores”.

Erdogan no seu melhor: apelar à identidade religiosa para mobilizar apoio, e desviar atenções da grave situação económica. A receita não é nova: a Turquia “está sob ataque”, e Erdogan precisa do apoio dos “verdadeiros e patrióticos” turcos. “Saúdo todos aqueles que estão prontos a dar pela cara pela sobrevivência do nosso país”, abria assim a maior parte dos seus comícios. “Não vamos dar oportunidades aqueles que querem dividir o nosso país e espezinhar a nossa bandeira”.

“O presidente Erdogan e o seu partido têm feito uma campanha vitriólica e polarizadora, com uma dose forte de religião, devido ao receio de perder algumas das grandes cidades, num cenário de crise económica”, escreveu esta semana Kadri Gursel num artigo publicado no Al Monitor. O presidente turco percebe melhor do que ninguém que só uma política identitária poderá se sobrepor às preocupações com o custo de vida.

As eleições acontecem de facto num cenário de crise económica – a Turquia entrou em recessão no ano passado, depois de uma década de crescimento acelerado. Atualmente a inflação supera já os 20%, e o desemprego também tem aumentado, e atinge já os 25% para os jovens. Perante a subida vertiginosa dos preços, o Governo mobilizou todos os meios para minimizar o impacto sobre o eleitorado, através de subsídios, benefícios fiscais, e a abertura de bancas para vender vegetais e outros artigos de primeira necessidade a preços subsidiados em todas a praças públicas. Mas tal só veio agravar a fragilidade da economia, e a estabilidade da lira, que nesta última semana caiu mais 5% (sobre os 30% de desvalorização registados no ano passado). Com uma parte substancial da dívida privada em moeda forte, muitas empresas do país estão à beira da falência. Há quem vaticine que o país terá brevemente de bater à porta do FMI.

Erdogan consolidou o seu poder usando um extraordinário boom económico – resta agora saber se a economia conseguirá fazer aquilo que nenhum líder da oposição conseguiu: “no Domingo vamos ver se o eleitorado está disposto a castigar o Governo devido à subida de preços e ao desemprego”, resumia Mustafa Sonmez, um respeitado jornalista. Quão amarga será a vitória de Erdogan?