Internacional

Recuperar o great de Great Britain

Numa cidade que depende de um porto que depende do comércio fluido com a UE, a “ignorância honesta” rendeu votos ao ‘Brexit’

Holyhead fica na ponta noroeste do País de Gales, uma das quatro nações do Reino Unido e aquela que, com a Inglaterra, deu a vitória ao ‘Brexit’ em 2016, apesar de ter beneficiado dos fundos da UE
FOTO ANA FRANÇA

Com a noite, que desce sobre o vale de repente como a cortina de um teatro, começa a dança ondulante dos camiões que durante a madrugada hão de encher ferry após ferry a caminho de Dublin. Surgem desmedidos, articulados, do meio do nevoeiro que envolve o vale: primeiro, chega a luz branca dos holofotes que trazem por cima da cabina, só depois entendemos a extensão de todo o veículo.

Holyhead, no distrito de Anglesey, extremo noroeste do País de Gales, não tem mais de 13 mil habitantes, mas um prodígio geográfico faz com que o vale por onde a cidade se expandiu esteja a 120 quilómetros de Dublin por via marítima. A capital da República da Irlanda é já ali ao fundo e, de ferry para lá e para cá, passam mais de 370 mil camiões por ano que trazem toneladas de produtos, todos os dias, das Irlandas para a Grã-Bretanha e depois para a União Europeia (UE), e vice-versa.

A ideia de uma barreira física entre as Irlandas arrepia toda a gente por aqui. O camionista Tommy Archer, de 75 anos, não imagina que os políticos possam ser “tão estúpidos”. Há, porém, um ‘Brexit’ a chegar. Eventualmente. E uma fronteira que pode reaparecer. Eventualmente. E ainda isto: Anglesey e todo o norte de Gales são dos locais que mais beneficiam dos fundos europeus. Ainda assim, em 2016 os galeses votaram pela saída (52,5%-47,5%).

O pub Edinburgh Castle fica mesmo ao lado da portagem de embarque dos ferries e fecha tarde. Há que aproveitar a clientela de motoristas que vão dormir em Holyhead antes de seguirem caminho, Europa fora. A jukebox tem os clássicos todos mas é “You Can Go Your Own Way”, dos Fleetwood Mac, que põe toda a gente a cantar.

Tommy votou pela saída da UE porque acredita que os planos desenhados pelos “burocratas refastelados” de Bruxelas vão acabar por diluir os traços individuais de cada país europeu, mas não quer que a fronteira irlandesa regresse. E vê mudanças radicais no horizonte: “Já não vai ser durante o meu tempo, mas um dia não vamos ter eleições nacionais, apenas eleições europeias, e as dezenas de lojas de comida rápida e os grandes sinais luminosos as grandes multinacionais de supermercados vão ocupar toda a paisagem”.

Tommy passou a vida a “mudar casas inteiras de um país para outro”. Quando uma família imigrante chegava ou partia para o país de origem, conduzia um camião com tudo o queriam levar ou trazer. Irrita-o que “um polaco ou um romeno” se contentem com qualquer salário que lhes ofereçam, mas não optou pelo ‘Brexit’ por não gostar de imigrantes. “Já vi bem como se vive nesses países e não censuro quem quer uma vida melhor.” Pensa, porém, que se entrarem menos imigrantes, “estes ingleses preguiçosos vão ser obrigados a fazer os trabalhos que agora recusam”.

“É A EDUCAÇÃO, SABES?”

Um homem de olhar perdido vai mandando opiniões da mesa do fundo, pejada de copos de cerveja. Voltou com lesões graves da Guerra do Golfo. A certa altura diz: “Não andámos a morrer numa guerra contra a Alemanha para agora recebermos ordens deles”. Tommy olha-o com tristeza, abana a cabeça; a rapariga que serve as bebidas abana a cabeça; o rapaz que recolhe dardos do alvo abana a cabeça. “Queríamos ajudá-lo, mas não sabemos como. Foi um grande lutador de boxe aqui na zona e no outro dia ia matando um velhinho, diz que vai preso”, conta Tommy.

Anglesey é o distrito mais pobre do Reino Unido. O rendimento anual não ultrapassa as 13.400 libras (€15.600), contra uma média nacional de 25.300 libras (€29.600) e 46.300 libras (€51 mil) em Londres.

O dono do Edinburgh Castle é conhecido na região como o “leaver of all leavers”, o que defende o ‘Brexit’ com mais paixão. “A nação votou para sair, os que estão no Parlamento a impedir a materialização dessa decisão deviam ser julgados por traição, para os calabouços já!”, pede Hugh Williams, 65 anos, enquanto prepara o serviço de pequenos-almoços do pub, que também aluga quartos. “Dizem que recebemos dinheiro da Europa, mas também o pomos lá. Qual é o problema de arrancar a ficha da tomada e ficar com a riqueza que produzimos?”

Todas as pessoas com quem o Expresso fala sobre o ‘Brexit’ referem em primeiro lugar a imigração, mas o problema parece ser com os imigrantes que pedem subsídios ou são vistos no meio a causar distúrbios, a beber na rua. “É a educação, sabes? Vem tudo de casa. Gosto de dizer que fui educado e não arrastado até à idade adulta”, diz Hugh. “O great de ‘Great Britain’ perdeu-se”, lastima. Só recuperando o dinheiro que o Reino Unido dá a outros países a título de ajuda será possível recuperá-lo, defende.

Segunda-feira não há peixe, mas cruzamo-nos com o aspirante a pescador Garry Rowsell. Professor assistente de Física durante 16 anos, há oito meses deixou a universidade para aprender a pescar e velejar. Antes de ser convidado para ensinar fazia investigação na área da geometria fractal, que diz que alguns objetos geométricos podem ser infinitamente divididos em partes, cada uma delas semelhante à original. “Passei quatro anos a tentar entender porque é que os flocos de neve têm aquela forma, estive muito tempo inebriado pela repetição infinita das pontas do floco”, explica Rowsell, feliz com a possibilidade de um objeto não ter fim.

PARTÍCULAS NUCLEARES RUSSAS

Tem 48 anos e lembra-se “de um país cinzento e triste onde toda a gente acordava com medo de uma guerra nuclear ou, pelo menos, de partículas radioativas que voassem de Londres após um ataque dos russos”. Preocupa-o que os nacionalismos voltem a engolir os povos europeus. “Depois do ‘Brexit’ tudo se precipitou, os nacionalismos latentes exaltaram-se na Europa. Não sei se será o fim, se outros países não vão querer sair. Aí, acabou. O Leste pode voltar a ser russo e voltaremos a ter medo das partículas radioativas.” Rowsell votou pela permanência na UE. Odeia o ex-primeiro-ministro David Cameron por ter prometido um referendo e diz que “ninguém aqui tem a noção da falta que a imigração faz”. Só 1% dos residentes vem de fora da UE. “Gostava de saber quantas pessoas deste distrito já viram um imigrante e, dessas, quantas viram os filhos perder empregos para um imigrante. Em Anglesey? Impossível.”

Alun Roberts gere o centro assistência à comunidade, o Môn CF. Orgulha-se de ir buscar pessoas “ao fundo” e de prestar assistência de “360°”. “Alguns chegam aqui e nem nos conseguem olhar nos olhos, estão quebrados, sem confiança nas suas capacidades. Dois meses depois de aprenderem a pintar casas e barcos ou consertar bicicletas e motores, parecem outros, levam dinheiro para casa, empregam gente.” O Môn CF oferece formação técnica e educação direcionados para sectores específicos que precisam de mão de obra mas, além disso, ajuda a preencher papéis para empréstimos e a analisar as opções de financiamento ao nível local e europeu.

Em três anos, mais de 500 pessoas receberam formação e 100 pequenas empresas receberam ajuda da associação. Metade do financiamento vem da UE e, apesar de haver orçamento aprovado até 2021, a incerteza do futuro angustia o ex-docente. “Hoje já demora quase dois anos a preparar um pedido de financiamento, imagine quando começarmos a ser centenas de associações a pedir dinheiro ao Governo central.” Pior: “Se os conservadores continuarem no poder e o Parlamento regional continuar trabalhista, quem diz que as prioridades de um e outro vão coincidir?”.

O centro comunitário fica em Market Street, artéria principal da cidade. Há ali uma loja de sapatos e malas que recebeu ajuda do Môn CF para começar. A dona, Clair Price, de 50 anos, tinha este sonho e pediu ajuda do outro lado da rua. Mesmo assim votou pelo ‘Brexit’.

IGNORÂNCIA HONESTA

“Fomos mantidos na ignorância acerca do que iríamos perder, talvez hoje votasse de outra forma.” A informação que as autoridades se preocuparam em transmitir às populações, sobretudo às mais isoladas, não foi suficiente e há gente a queixar-se disso. “Disseram-nos que teríamos mais dinheiro para a saúde e, acima de tudo, menos imigração. Foi isso que me levou a votar, mas não disseram que as coisas que importo para a loja podiam vir a custar muito mais depois de impostas novas tarifas”. Agora receia ter de aumentar os preços, que “já mal competem com os dos grandes supermercados”.

Roberts fala da “ignorância honesta” das pessoas, que só se preocupam com os problemas da sua rua por não conhecerem mais. “Há pessoas a trabalhar no centro cujos salários são pagos pela UE e, ainda assim, votaram para sair. Se lhes perguntas porquê, dizem: ‘Bom, não sei, é uma espécie de feeling, de intuição’.”

O processo de quase total reconversão energética (e, logo, económica) em curso no Norte de Gales foi levado a cabo com fundos da UE. Dos mais de 20 milhões de libras (23 milhões de euros) investidos num projeto de recolha de energia das ondas, o “Holyhead Deep”, Bruxelas contribuiu com 10.431 milhões de euros, segundo dados do governo regional.

De volta ao Edinburgh Castle, o filho de Hugh, David Williams, chega para ajudar o pai. Ouve falar do ‘Brexit’ e começa a entrelaçar histórias do seu passado com as de Holyhead, como quem descreve o trabalho das mulheres que, na infância, teciam as redes de pesca. “Quando comecei a pescar, e até há uns 15 anos, éramos 30 barcos. Restam três.”

David já não é pescador mas toda a gente continua a chamar-lhe isso mesmo, tal como um embaixador é sempre embaixador. De certa forma foi isso que se tornou: um embaixador pelos direitos dos pescadores junto do resto da comunidade. “De todo o nosso imenso mar, o Reino Unido só pode pescar 21% do peixe. Ninguém resiste a isto. As políticas da UE são um atentado à natureza, à forma de sustento de milhões de famílias. Temos de recuperar o total usufruto das nossas próprias águas, somos uma nação de pescadores.” Gesticula muito enquanto diz isto.

A vida de um pescador nunca foi fácil, mas as sucessivas atualizações da Política Comum para as Pescas tornaram “a vida de um pescador impossível”. “Numa das últimas vezes em que fui ao mar pescar vieiras, não dormi durante quase quatro dias. Lançava as redes e depois media, pesava e empacotava as vieiras conforme os regulamentos da UE. Sempre assim. Quando chego à costa está um gajo da UE, do governo de Gales mas impondo as leis comunitárias, que despeja todas e as mede uma a uma e pesa tudo, para garantir que não estamos a apanhar vieiras muito pequenas nem mais do que podemos”, explica David.

Tem muitas histórias assim. “Temos de comprar para os nossos barcos uma espécie de radar que nos vigia o tempo todo: onde andam as redes, a quantas milhas da costa estamos a pescar, etc. A UE obriga a isto. Ora, eu comprei um barco aqui por duas mil libras [€2300], que não é reconhecido na Irlanda, onde comprei outro que não é reconhecido na Ilha de Man, onde comprei outro. Isto não é normal, a sério, não há dinheiro para estas coisas.”

Ouvir David falar dos tempos em que o peixe se vendia ao longo de quilómetros da marginal, dos carpinteiros dos barcos, dos pubs a grelhar peixe de manhã à noite, das famílias de bicicleta na promenade a parar para gelados de limão, é ser convertido ao passado. E toda a gente faz que sim com a cabeça.