Internacional

“O governo Bolsonaro é uma articulação perversa”, diz ex-candidato às Presidenciais

Tem 36 anos, é professor e escritor, e foi o candidato do PSOL – o partido de Marielle Franco, a vereadora assassinada no Rio de Janeiro a 14 de março – à primeira volta das eleições presidenciais no Brasil. Vai ser uma das vozes mais presentes na oposição ao Governo de Jair Bolsonaro, que será empossado amanhã como 38º Presidente do Brasil. Leia aqui a versão completa da entrevista a Guilherme Boulos, o escritor e professor revolucionário que nasceu numa família burguesa

Guilherme Boulos
MIGUEL SCHINCARIOL

A entrada em funções, a 1 de janeiro. do Governo liderado por Jair Bolsoonaro tem grandes riscos para a democracia no Brasil. O alerta foi dado por Guilherme Boulos, ex-candidato à Presidência do pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL, 0,58% na primeira volta) na escala que fez em Lisboa, durante um périplo que o levou ao Parlamento Europeu, a França e a Espanha. Considera que o capitão reformado será mais discreto do que o Presidente cessante, Michel Temer, na compra do apoio parlamentar de que necessita para governar. “Mas já está a negociar.” Os primeiros meses de 2019 vão ser conturbados e de contestação, adiantou o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que está empenhado na construção de uma frente ampla de resistência ao avanço da extrema-direita, não só no Brasil mas a nível internacional. “É a condição para a esquerda sobreviver.”


O que espera do Governo que vai entrar em funções?
O Governo Bolsonaro é uma articulação perversa de três linhas que existiam na política brasileira, mas que nunca se tinham juntado num governo. De um lado, um liberalismo selvagem na economia, sem respeito pelos direitos, ataque às reformas, de privatização geral. Do outro, um autoritarismo político atroz, de quem se inspira em ditadores e exalta torturadores, para quem a oposição “pode escolher entre a cadeia e o exílio”, como disse Bolsonaro na campanha. A estes dois junta-se o ultraconservadorismo moral, ligado aos sectores mais conservadores da igreja evangélica. Por estas razões, o Governo Bolsonaro representa um risco real para a democracia e liberdade democráticas no Brasil.


Um gabinete com pelo menos nove militares faz recear um regresso da ditadura?
A militarização do Governo e do gabinete é muito preocupante, pois quando se dá poder aos militares é muito difícil, depois, tirá-lo. Mas não é o único aspeto preocupante. Há um ministro dos Negócios Estrangeiros que diz que o aquecimento global é uma invenção de marxistas, o da Educação manda abertamente os alunos filmar e gravar as aulas dos professores para denunciar doutrinação comunista. Há ainda uma ministra dos Direitos Humanos que disse, na sua primeira declaração, que chegou a hora de a Igreja governar o Brasil, um ministro da Economia que é um banqueiro que montou uma equipa de privatizadores.


E a nomeação do responsável pela operação Lava Jato, Sérgio Moro para o superministério da Justiça?
De facto, há um ministro da Justiça que, enquanto juiz, foi responsável pela condenação de Lula da Silva, o principal adversário de Bolsonaro, e é agora agraciado com um lugar no Governo. As posições do futuro Presidente e da equipa que montou subentendem um Executivo devastador para os interesses populares e muito irresponsável com as liberdade democráticas.


Quando recebeu o diploma presidencial, Bolsonaro disse que queria falar com o povo sem intermediários. O que é que isso significa?
Gostaria que tivesse falado de novas formas de democracia direta, de participação popular. Mas não me parece que seja isso. Tal como Donald Trump está a governar pelo Twitter. Bolsonaro vai fazê-lo pelo WhatsApp, para tentar criar um caldo de intimidação para todo e qualquer tipo de oposição e de ataque às minorias. Com a mesma estratégia de disseminação de fake news usada na campanha.


E o comportamento da família Bolsonaro, escândalos e declarações ?
São uns arrivistas. Bolsonaro ganhou as eleições aproveitando-se de um sentimento de rechaço à política no Brasil. Uma crise de representação sem precedentes que não é um fenómeno apenas brasileiro, mas internacional.


Fragilidades de um sistema com 30 partidos no Parlamento?
Pior do que isso, porque se fossem 30 partidos com ideologias diferentes não seria mau. A ideologia de boa parte desses partidos é o negócio. Bolsonaro fez-se eleger como se fosse um outsider, o que é mentira, pois é deputado há 30 anos. Vão começar a aparecer escândalos, porque Bolsonaro já começou a negociar a sua governabilidade com esses mesmos sectores da politica tradicional. Tem práticas no mínimo muito esquisitas, como a da assessora-fantasma que denunciei durante a campanha ou do subsídio de alojamento. O caso do motorista de Flávio Bolsonaro, suspeito de canalizar os subornos, é o mais recente. Tudo vai começar a aparecer e é provável que comece a gerar deceção em parte da base que o elegeu.


Que outras deceções são de esperar?
Bolsonaro começa a perceber que o seu programa económico é devastador e que vai gerar impopularidade. Sabe também que a imagem de outsider da politica vai ser desmontada. Receamos que logo nos primeiros meses de governação, momento em que estará mais forte, aproveite para adotar as medidas mais draconianas e antidemocráticas.


E as contradições entre os os grupos que o apoiam, como os militares e os ultraliberais?
Essas contradições vão estar muito presentes, até porque Bolsonaro não parece ter preparação politica suficiente para moderar e unificar essas várias equipas. Mas não as sobrestimaria. Porque o grupo de militares que está com Bolsonaro não é da geração de nacionalistas e antiliberais. Alguns já se manifestaram como o vice-presidente, general Mourão, a defender privatizações. Mas o programa não vai mudar.


Falou em falta de preparação política. Como vai ser no Congresso ?
É preciso esperar para ver. Bolsonaro já entrou na negociação. Há três ministros do [partido conservador] DEM. Não estou certo de que consiga fazer uma coligação de base para começar a governar. É provável que tenha de fazer mais ajustes no Governo para contemplar mais sectores parlamentares para poder aprovar projetos na Câmara e no Senado.


Traindo promessas eleitorais?
Esse balcão de negócios, como dizemos no Brasil, pode ser mais ou menos explícito, mais escandaloso ou sorrateiro. Quando se nomeia um representante de um partido para um ministério, é essa pessoa que vai nomear a equipa, já se está a negociar com um grupo político. Mas nem sempre são nomeações escandalosas, como as que fez Temer. Acredito que Bolsonaro não o vá fazer dessa forma, mas não quer dizer que não participe no mesmo jogo.

No quadro de uma certa derrota nas urnas, como deverá refundar-se a esquerda?
A esquerda precisa de reinventar os seus caminhos, olhando para o futuro e não para o espelho retrovisor. Se tudo o que esquerda puder oferecer for uma repetição do passado, não vai encantar ninguém, por mais avanços que tenha havido nesse passado. A esquerda precisa de reaprender a falar a linguagem do sonho, da utopia, ligar-se à esperança das pessoas. Bolsonaro trabalha no registo do medo. A maneira de enfrentar e vencer esse registo é a esquerda apresentar um projeto claro de respostas concretas aos problemas das pessoas.

Guilherme Boulos com Catarina Martins na escala que fez em Lisboa, durante um périplo que o levou ao Parlamento Europeu, a França e a Espanha
ANTÓNIO COTRIM/ Lusa

E no imediato?
O nosso foco está no processo de resistência ao retrocesso incrível do nosso país. Queremos construir uma frente ampla em defesa da democracia. Temos um Governo que fala abertamente de atacar as liberdades democráticas, em tratar movimentos sociais como terroristas. Existe uma lei, que está a ser aprovada no Congresso, que trata os movimentos sociais como os Sem Teto e os Sem Terra (MTST) como terroristas. Prevê a prisão de militantes e dirigentes e o ataque a esses movimentos. Estamos a falar de um Presidente que estimula de maneira aberta o ódio às minorias, às oposições. E quando a mensagem que vem de cima é de violência, quando chega cá em baixo surge como a libertação dos piores instintos.


Como, por exemplo?
Há dias houve um incêndio criminoso num acampamento do MTST em Curitiba, que deixou 300 famílias sem casa. Aparentemente, foi ateado por polícias. Antes disso, dois militantes do Sem Terra foram mortos por milicianos em Paraíba. O ambiente que Bolsonaro construiu antes mesmo de chegar ao Governo é de risco para a democracia. Não é que não existissem riscos, mas agora há uma espécie de salvo conduto. Há condições para criar uma ampla frente democrática como não se vê desde o movimento Diretas Já, que acabou com a ditadura militar.

O Partido dos Trabalhadores (PT) não vai tentar controlar essa frente?
Uma frente como essa só dará certo se não tiver dono, sem hegemonias ou projetos eleitorais que se coloquem à frente da necessidade de uma luta concreta. O PT vai ter de compreender isso, porque senão vai ficar isolado. Temos que ter maturidade para perceber que o que nos une é muito maior do que aquilo que nos divide neste momento. Estamos também a conversar com forças políticas latino-americanas e europeias para articular o campo progressista para enfrentar o avanço da extrema-direita no mundo. Partilhar experiências e delinear estratégias.


Uma nova Internacional?
A extrema-direita já tem uma nova Internacional. Steve Bannon [estratega de Trump] está a construir uma internacional de extrema-direita e já declarou que vai querer interferir na eleições europeias de maio de 2019. O que aconteceu em Espanha com o partido Vox é preocupante. O que acontece em Itália também. Achar que tudo isso não faz parte do mesmo fenómeno é uma ilusão. São os mesmos métodos, com a utilização de redes sociais, com troca de tecnologia. A esquerda poder reagir a isso internacionalmente é uma questão de sobrevivência política. Enquanto a extrema-direita tem globalizado o medo, as mentiras e o ódio, a esquerda tem de globalizar um caminho de resistência e esperança.


Considera-se o herdeiro de Lula da Silva?
Herdeiro diz-se de quem está morto. Lula está vivo e é uma liderança política que merece respeito. Tenho construído o meu próprio caminho com respeito e admiração por Lula, mas também com as diferenças que tenho com Lula e os seus governos.