Internacional

Morreu John McCain, senador e herói americano

John McCain era um herói para os americano. Preso e torturado durante a guerra do Vietname, a sua dignidade recorda outros tempos na política americana. Tentou, por duas vezes, chegar à Presidência da República. Era muito crítico do atual presidente

Brian Snyder/REUTERS

Algures durante os anos 90, num programa de televisão, o ex-senador George McGovern, que tinha sido o candidato democrata nas eleições presidenciais de 1972 e um dos principais opositores à guerra do Vietname, viu-se frente a frente com o senador John McCain, um reconhecido herói dessa guerra. A discussão não era sobre os dois, mas a certa altura McCain, que falava por ligação vídeo, fez um aparte para se dirigir a McGovern, naquele tom sério e cortês que era habitual os senadores usarem uns com os outros. Tratando-o por senador e por 'sir', contou-lhe que as intervenções públicas de McGovern durante a guerra não tinham ajudado os soldados que, tal como ele, se encontravam prisioneiros dos vietcongs. McGovern, visivelmente irritado, respondeu que se as suas opiniões tivessem sido seguidas McCain nunca teria chegado àquela situação.

Mesmo quem concordasse com as posições de McGovern poderá ter-se impressionado com a atitude de McCain. A mistura de respeito, gravidade e emoção era característica quando ele falava de guerra. Em 2001, um mês após o 11 de setembro, publicou um texto a defender os bombardeamentos no Afeganistão. "Por mais arrebatador que seja o apelo às armas, por mais justa a causa, ainda devemos verter uma lágrima por todos os que se perderem quando a guerra nos impuser o seu preço", escrevia. "Verter uma lágrima e continuar o trabalho de matar os nossos inimigos tão depressa quanto pudermos e tão cruelmente como devemos".

Invocando diretamente a sua experiência pessoal, acrescentava: "Os veteranos de guerra vivem para sempre com a memória da natureza impiedosa da guerra, das coisas horrendas que foi necessário fazer pelas suas mãos. Não hesitaram no seu terrível dever porque sabiam que a liberdade que defendiam merecia que morrer e matar por ela". E concluía: "A guerra é uma coisa miserável. Em frente com ela".

Retórica à parte, McCain tinha geralmente uma reputação de falcão, alguém que não podia pensar numa guerra que não estivesse logo a favor, fosse na Sérvia, no Afeganistão, no Iraque, no Mali, na Líbia, na Síria ou até no Irão, onde o tom em que ele afirmava esperar que não houvesse guerra soava mais como uma ameaça do que como um apelo à paz. Talvez essa impressão não fosse inteiramente correta. Do que não há dúvida é que McCain perfilhava a missão internacionalista dos EUA, vendo a ação militar como parte dela.

Sobretudo, achava que, a partir do momento em que o país se metia numa guerra, era para ir até ao fim. Isso não o impediu de, décadas mais tarde, enquanto senador, ser um dos principais atores da reconciliação entre o Vietname e os EUA, contribuindo nomeadamente para encerrar (tanto quanto possível, pois as teorias da conspiração nunca param) o dossier dos prisioneiros de guerra.

Cinco anos e meio de cativeiro

No caso do Vietname, ele conquistara o seu direito a falar. Filho e neto de almirantes, compensava um percurso escolar deficiente (na academia naval, fora o 894º numa truma de 899) com um apetite irresistível por ação. Uma vez qualificado como piloto, ofereceu-se para o Vietname, onde realizou 23 bombardeamentos antes de um míssil abater o seu avião a 26 de dezembro de 1967 e ele ser capturado num lago. Seguiram-se 5 anos e meio de cativeiro, com espancamentos e outras formas de tortura. O seu cabelo embranqueceu totalmente e houve outras sequelas fisicas permanentes. Chegou a pensar em suicídio.

A única cedência que fez, e da qual se penitenciaria sempre, foi assinar uma confissão "anti-americana" (todo o homem tem o seu ponto de quebra e ele atingira o dele, explicou mais tarde). A certa altura, os vietnamitas, sabendo de quem ele era filho, propuseram libertá-lo, mas ele recusou passar à frente dos outros, cumprindo uma regra de honra. Isso valeu-lhe mais uns anos de sofrimento, e quando finalmente o libertaram em 1973, o resto da sua vida começou.

Oficialmente herói, regressou a uma sociedade que há muito detestava aquela guerra longínqua e impossível de vencer que ceifava uma geração de jovens americanos. Ele próprio acabou por perceber que as suas possibilidades de promoção militar eram restritas, quanto mais não fosse por algumas limitações físicas que lhe tinham ficado.

Inteligente e fluente, esteve uns anos a fazer a ligação entre a Marinha e o Congresso, o que lhe proporcionou uma introdução à política. E em 1982 foi eleito para a Câmara dos Representantes como republicano, pelo Arizona. Não prejudicou o facto de se ter separado da primeira mulher - a qual esperara por ele durante todo o cativeiro e andava em cadeira de rodas desde um acidente de automóvel que entretanto sofrera - casando com a filha de um homem rico do estado, com meios e conhecimentos para o ajudar na sua carreira política.

Quando um adversário político o acusou de paraquedismo (ou seja, de não ser do Arizona e portanto estar a candidatar-se lá por oportunismo), McCain lembrou que tinha passado décadas na Marinha, como a sua família antes dele, e que os militares passavam a vida de um lado para o outro, sem poder gozar os confortos e a estabilidade de pessoas como o seu adversário. Só faltou lembrar o seu local de nascimento: a base naval norte-americana de Coco Solo, no Panamá.

Hostilidade com Trump

Ao longo das suas três décadas e meia no Congresso - em 1987 passou da Câmara dos Representantes para o Senado, onde foi sempre reeleito até hoje - McCain construiu uma reputação mista. Por um lado, tinha fama de 'maverick', isto é, de alguém que pensa pela sua cabeça e é capaz de desafiar as orientações partidárias. Por outro lado, quando era realmente preciso ele fazia compromissos, a nível de posições políticas e não só. Logo nos anos 80, viu-se atingido por um escândalo de fraude financeira que envolvia um apoiante seu.

Ambas as suas tentativas presidenciais falharam. A primeira, logo nas primárias republicanas de 2000, quando a campanha de George W. Bush espalhou rumores sobre um filho negro que ele teria (na verdade, tratava-se de uma criança oriunda do Bangladesh que o casal McCain adotara). A segunda foi em 2008, e aí ele conseguiu a nomeação, mas foi derrotado por Barack Obama, no momento em que a crise financeira tornava inevitável uma mudança de regime em Washington. A escolha de Sarah Palin para candidata a vice-presidente também não ajudou McCain, embora ela tenha acabado por se converter num ícone de faixas extremistas do partido.

Ao contrário de outros congressistas republicanos, McGain parece ter estabelecido uma relação decente com Obama. No ano passado, já com Trump na Casa Branca, foi seu o voto decisivo que impediu a revogação da lei de saúde de Obama no congresso. Não muito antes, McCain soubera que tinha um tumor no cérebro já em estádio 4 - o mais grave. Isso não o impediu de estar presente no Senado às primeiras horas da manhã de 28 de julho. Com todos os olhos postos nele, caminhou até ao meio da sala e apontou o polegar para baixo.

Na altura Obama telefonou-lhe a agradecer pessoalmente, e McCain ter-lhe-á dito que não fizera aquilo por ele. Sem os republicanos apresentarem uma alternativa ao Obamacare, ele limitara-se a fazer o que achava correto. Claro que Trump, com quem ele andava às turras há muito, interpretou o gesto de forma pessoal, como outras pessoas fizeram. McCain nunca escondeu o desprezo que sente pelo atual presidente do seu país, o qual chegou a negar-lhe o mérito militar, dizendo que herói é quem não se deixa capturar.

Perante os sucessivos escândalos e despropósitos de Trump, incluindo a sua amizade suspeita com Putin, há uns meses McCain fez saber que não queria o Presidente no seu funeral. Pelo menos nisso ambos estarão de acordo. Quando a família de McCain anunciou que ele tinha decidido parar os tratamentos, Trump foi dos poucos políticos, republicanos ou democratas, que não ofereceram uma mensagem de simpatia.

Nas cerimónias fúnebres em Washington estará o vice-Presidente Mike Pence, bem como os antigos Presidente George W. Bush e Barack Obama. MCCain será enterrado no cemitério da Academia Naval de Annapolis.