Internacional

Charlottesville. “Esta nebulosa fascista está a ter uma expansão internacional”

Passou um ano sobre o avanço dos supremacistas brancos em Charlottesville, que custou a vida a uma ativista antifascista local. As tensões continuam bem vivas, mesmo que uma outra manifestação, convocada pelos organizadores da marcha do ano passado, tenha ficado muito aquém dos números esperados. “Temos um enorme problema racial na nossa cidade e no nosso país”, alerta a mãe da vítima de 12 de agosto de 2017

JIM URQUHART/Getty

“Sempre que posso, evito passar na Fourth Street, o cenário do ataque com o carro”, conta a escritora Jabeen Akhtar ao Expresso, referindo-se ao atropelamento que há um ano matou a ativista local Heather Heyer. Também residente em Charlottesville, no estado norte-americano da Virgínia, a autora do romance “Welcome to Americastan” diz que a cidade “ainda está magoada”. “É verdade que a manifestação [de extrema-direita] é amplamente vista como uma invasão de forasteiros mas os organizadores eram de Charlottesville ou andaram aqui na escola”, lamenta.

No primeiro aniversário da fatídica manifestação “Unite the Right”, que juntou membros do Ku Klux Klan (KKK) e outros elementos nacionalistas e supremacistas brancos, o blogger Jason Kessler tentou repetir o feito mas não conseguiu autorização para o fazer em Charlottesville. Teve de o fazer em Washington. No entanto, os neonazis que este domingo responderam à convocatória rondaram os 20, muito longe das quatro centenas que a organização esperava, enquanto os militantes antifascistas eram às centenas.

“Não se deve sobrevalorizar o facto de não ter havido uma adesão como estavam à espera”, alerta ao Expresso Mamadou Ba, dirigente da associação SOS Racismo. “Os supremacistas brancos encontraram respaldo da sua ação política na figura maior do Estado, que é o Presidente dos EUA. Quando James Field assassinou Heather Heyer, Donald Trump não quis tomar uma posição clara, colocando inclusive no mesmo patamar os antifascistas e os neonazis”, acrescentou.

“As feridas raciais na América ainda estão por sarar”

O centro de Charlottesville foi palco de uma concentração no sábado, durante a qual a mãe de Heather visitou o local do atropelamento mortal da filha e colocou flores num memorial improvisado. Para Susan Bro, “as feridas raciais dos EUA ainda estão por sarar”. Rodeada por uma multidão, Susan agradeceu a presença de todos na homenagem à filha mas também lembrou as dezenas de feridos e os dois soldados mortos na queda de um helicóptero há um ano. “Temos um enorme problema racial na nossa cidade e no nosso país. Temos de resolver isto ou estaremos aqui de volta em pouco tempo”, disse.

Com centenas de estudantes e ativistas de extrema-esquerda, a concentração transformou-se também num protesto contra a polícia. Entoando cânticos como “Cops and Klan go hand in hand” – o que, numa tradução livre, significa algo como “A polícia e os membros do KKK andam de mãos dadas” –, vários estudantes insurgiram-se contra a presença e a atuação policiais vigorosas, em contraste com o que afirmaram ter sido a passividade das forças de segurança em 2017 face aos neonazis.

“A manifestação só expôs os demónios que se escondiam”

A marcha de sábado foi o corolário de um dia de esperança e dor, revolta e memória. Algumas lojas permaneceram abertas durante o fim de semana em sinal de solidariedade e uma, em particular, destacou-se dos restantes espaços comerciais. “É a minha cidade e eu não tenho medo”, disse Karen Walker, uma florista que manteve a sua loja aberta no sábado e tinha no exterior um arranjo com flores gratuitas para quem passasse.

Jabeen Akhtar não se conforma com os eventos do ano passado e sobretudo não esquece a proveniência dos responsáveis. “Eles eram terroristas domésticos. E a manifestação só expôs os demónios que se escondiam sob o verniz perfeito e polido desta cidade: a segregação, a desigualdade de rendimentos, a raiva”, disse. Mamadou Ba também faz questão de lembrar as motivações dos organizadores. “Richard Spencer [supremacista branco americano] disse claramente que se manifestavam para defender o homem branco e lutar contra a ameaça do multiculturalismo”, refere.

Os fascistas “já não se preocupam em ter um discurso higiénico”

Spencer é amigo do antigo conselheiro de Trump, Steve Bannon, que está, segundo o dirigente da SOS Racismo, “a construir uma Internacional Fascista que se passeia pela Europa”. “Eles tentarem ocupar o espaço público para propagarem ideias antidemocráticas já é, só por si, preocupante e não devia acontecer em nenhuma democracia”, lamenta. Contudo, o que reputa de mais preocupante é eles terem conseguido “finalmente, e do ponto de vista de legitimidade política, encontrar um porta-voz com maior capacidade de influência social e política”, insiste, referindo-se novamente a Trump. E se, no ano passado, o Presidente responsabilizou “ambos os lados” pela violência, este ano manteve-se no seu clube de férias, em Nova Jérsia, a jogar golfe.

“Esta nebulosa fascista está a ter uma expansão internacional e a sua reformulação política já não se preocupa em ter um discurso higiénico relativamente àquilo que era o posicionamento das forças de extrema-direita nos anos 1990, início de 2000, que era mais circunscrito a grupúsculos”, continua Mamadou Ba. “Hoje, temos figuras públicas importantes, temos o Parlamento Europeu com mais de 20% de forças fascistas representadas. Isto deve merecer a nossa preocupação. Isto não veio para parar, infelizmente”, alerta ainda. Quanto a Charlottesville, “levará muitos anos até que alguém volte a designá-la como a cidade mais feliz da América”, conclui Jabeen Akhtar.