Família Dib
Armanaz, Idlib - Olhão (3921 kms)
em Portugal há quatro anos
“Eu quando me casei não foi para que uma mulher pudesse fazer as coisas para mim. Vivi seis anos em Alepo a estudar para ser chefe de cozinha, sempre limpei o quarto, a cozinha depois do turno, sempre lavei as minhas roupas. Por mim ela pode e deve ir trabalhar fora de casa, ganhar dinheiro para que possamos poupar para o futuro, se for só eu a trabalhar nunca vamos ter uma vida melhor.” Ayman segue os preceitos do islão ao milímetro mas não vê no livro sagrado justificação para tornar a mulher uma espécie de satélite do homem. Sali é mãe da pequena Maria, de cinco anos, também é sua mulher, mas principalmente “ela é ela, a Sali”. Sali ri-se, está sentada com Maria ao colo numa pequena casa no bairro de pescadores da Fuseta, em Olhão. Está a estudar estética e o marido é o primeiro a dizer que o sonho de toda a família é abrir-lhe um salão.
No dia em que chegaram a Portugal Maria tinha apenas 11 meses. Quando saíram de Aleppo era recém-nascida, chorava muito e sem controlo, como todos os bebés. Para atravessarem as montanhas da Turquia sem que os guardas da fronteira da Síria ou da Turquia os prendessem - ou pior ainda - deram calmantes à bebé durante cinco dias. “Se ela chorasse morríamos os três naquela fronteira”, conta Ayman, de 34 anos, natural de Armanaz, da zona de Idlib, uma província-arena-de-matança para onde fugiram todos os rebeldes que iam sendo expulsos das terras que o exército de Assad ia conquistando. Como também foi ali que começaram a nascer os vários grupos de radicais islâmicos que contaminaram os objetivos revolucionários de quem não queria terrorismo mas somente mais liberdade - os civis de Idlib sofreram - e ainda sofrem - alguns dos ataques mais fulminantes da guerra.
A viagem da Turquia para a Grécia não aconteceu na primeira tentativa. Esperaram três vezes no porto de Esmirna, a cidade portuária turca de onde sai uma grande parte dos barcos para a Grécia, e por três vezes a polícia turca mandou-os para trás. Estavamos em maio de 2016, poucos meses antes a Turquia tinha assinado com a União Europeia um acordo que previa a entrega de cerca de seis mil milhões aos turcos se estes conseguissem reduzir o fluxo constante de refugiados que estavam a chegar à Europa.
Ayman leva o braço acima da cabeça e deixa-o cair no colo. Imita a queda de bombas à volta do seu restaurante em Armanaz. “Uma aqui, outra aqui, outra ali, outra aqui, até que um dia caiu uma bomba a metros do sítio onde eu trabalhava”, conta. “Não consigo mais, não consigo esperar mais”, pensou. No dia em que Maria nasceu, 29 de novembro de 2015, a cidade estava a ser bombardeada sem respaldo desde as primeiras horas da manhã. Sali tinha feito uma cesariana, tinha de ficar no hospital em observação até os médicos terem a certeza de que a bexiga estava a funcionar, mas os hospitais de Idlib estavam entre os alvos do exército de Assad. “Eles não me deixavam ir buscá-la, meu Deus do céu, bombas, bombas, bombas, eu estava maluco, ela adormecida num hospital e mandaram-me para casa”, conta Ayman.
Nem Sali nem o marido compraram coletes salva-vidas. O traficante viu Maria tão pequena e ofereceu-lhe um. Zarparam. De repente um enorme barco da Guarda Costeira turca mete-se à frente do barco onde seguiam com mais meia centena de pessoas. “O barco apontou-nos uma luz enorme, branca, e as pessoas como nós, as que tinham crianças, levantaram-nas bem alto para que eles pudessem ver que tínhamos bebés, crianças pequenas a bordo e nos deixassem seguir. O homem que estava a conduzir o barco parou e depois acelerou muito rapidamente, foi, foi, foi o mais rápido que pôde e mais nada, pronto, e ninguém veio atrás de nós.”
Quando lhes disseram que vinham para Portugal foram ao Google ver de que país se tratava
À medida que o número de sírios a chegar à Turquia com intenção de passar o Egeu para a Grécia ia aumentando, as travessias tornaram-se um negócio como outro qualquer. Para garantir mais confiança dos seus potenciais clientes, os traficantes desenvolveram um sistema de cofres e códigos. “As pessoas que têm os barcos também têm cofres onde guardam o depósito de cada família. Dão-nos um código e quando chegamos à Grécia ligamos e eles vão levantar o dinheiro referente àquela família.” Estes cofres estão escondidos em todo o tipo de negócios legais, de barbearias a mercearias, de agências de viagens a mecânicos. “Nós pagámos 2000 euros, imagina o dinheiro que eles ganham num barco com 60 pessoas, sei lá quantos barcos por dia”, suspira.
Quando lhes disseram que vinham para Portugal foram ao Google ver de que país se tratava, dizem enquanto se riem. Agora que aqui estão não acham assim tão diferente da Síria em paz: “As velhinhas a comentar tudo o que é novidade - igual”, diz Ayman. Estão em paz, dizem que não precisam de mais nada, só de dois ordenados para poderem começar a poupar.
Do telefone de Ayman começa a soar o chamamento para a oração do meio da tarde, é uma app específica, mas Ayman adia o alarme. Há muito que aprendeu a adaptar a religião aos ritmos da vida europeia.
“Não quero que a minha filha odeie seja quem for”
Mas Ayman sabe que não será capaz de perdoar. Sabe que se um dia se deparar com um membro de uma milícia terrorista, com um militar do regime, não vai conseguir perdoá-lo. “Há algo que me corrói o coração ao olhar para os responsáveis - e, como o meu, muitos outros corações são hoje incapazes de perdoar.” Ayman perdeu 10 pessoas da sua família na guerra mas não diz mal dos russos à filha, que com cinco anos e quatro de vida em Portugal não tem memórias da Síria. Não diz mal dos sírios que apoiaram o Presidente, não diz mal dos xiitas nem dos sunitas. “Vou sempre dizer à minha filha as coisas boas da Síria, nunca vou dizer que este ou aquele ajudou a matar a sua família, que este país lançou bombas sobre a cidade dos pais, não, ela pode sempre ler mas eu não lhe vou dizer porque ela tem de crescer sem estes fantasmas e foi também por isso que a quis tirar de lá, não quero que ele odeie seja quem for.”