Projetos Expresso

As farmácias como extensão dos cuidados primários

Revolução: farmacêuticos vão vacinar, renovar medicação e responder a doenças sem gravidade, segundo proposta do Governo. Apesar das vantagens, médicos hesitam e levantam dúvidas. Helder Mota Filipe avisa que crise política coloca o projeto em risco. “A Revolução Silenciosa do SNS: Que desafios para a Farmácia Comunitária” foi o mote para a quinta edição do Pharma Call, organizado pela Tecnigen, a que o Expresso se associou como media partner

Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos posa para a fotografia em Alcobaça. Helder Mota Filipe está preocupado com o impacto que a mudança de Governo poderá ter
João Girão

Aliviar a sobrecarga do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e aumentar o acesso dos doentes são objetivos centrais de Fernando Araújo, o homem que segura o leme de um SNS que há muito navega em águas agitadas. O plano do diretor-executivo para recuperar o sistema inclui a reorganização dos serviços, mas também a inclusão das farmácias como uma extensão dos cuidados de saúde primários. “Queremos que as farmácias sejam a maior rede de proximidade do SNS”, afirmou esta semana no parlamento.

Mas o que está, afinal, em cima da mesa? Segundo a proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2024, será implementado um “programa-piloto de serviços farmacêuticos para situações de patologia aguda simples” — na prática, permitir que as farmácias possam tratar doenças sem gravidade e, com isso, diminuir o número de pessoas que recorrem às urgências. Segundo o “Health at a Glance 2023”, da OCDE, Portugal ocupa a primeira posição dos países com mais visitas às urgências por cada 100 habitantes. Porém, é o oitavo pior classificado, entre 32 nações, no número de consultas médicas presenciais.

Para o bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, esta extensão da responsabilidade “permite retirar pressão ao SNS” e assegurar que a saúde chega a todos os cidadãos por via das cerca de 3000 localizações de venda de medicamentos. “Se pudermos ter um farmacêutico comunitário que esteja habilitado a fazer o diagnóstico e a prescrever o antibiótico para uma infeção urinária, resolve 90% dos casos”, exemplifica. Helder Mota Filipe não tem dúvidas de que este é um passo no sentido certo, depois de as farmácias terem sido uma peça importante na campanha sazonal de vacinação contra a gripe e a covid-19 — a estas vão juntar-se as vacinas do tétano e difteria, confirmou o diretor-executivo do SNS. Sobre o potencial destas medidas, o (ainda) ministro da Saúde, Manuel Pizarro, considerou, durante o 5º encontro da Tecnigen em Alcobaça, que não só as farmácias “conseguem estar ainda mais próximas dos cidadãos”, como são mesmo “o braço longo do SNS”.

A “revolução” que os profissionais consideram estar em curso não é uma ideia original portuguesa, mas inspirada em modelos que têm sido aplicados em países como a Escócia (ver caixa). A ambição esbarra, contudo, na desconfiança demonstrada por médicos como Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos, que considera existirem “dois erros de forma” na proposta de Fernando Araújo. “Os farmacêuticos, segundo o seu próprio código deontológico, não podem prescrever medicamentos, tal como os médicos não podem ter farmácias porque há conflito de interesse”, explica.

Em segundo lugar, Miguel Guimarães considera que o papel de triagem “é tipicamente uma situação do médico” ou da linha SNS 24, que tem “protocolos” para “orientar os doentes” e não para os tratar. Este é um desafio reconhecido pelos farmacêuticos, que consideram importante rever a legislação, mas também pelo Ministério da Saúde, que prevê estabelecer protocolos com a Ordem dos Médicos. O Expresso pediu uma reação à instituição liderada por Carlos Cortes, mas não obteve resposta até ao fecho desta edição. A Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar concorda com as críticas e considera a “transferência de competências” para privados “inconsistente com o fim das parcerias público-privadas”. “Traz-nos apreensão”, reconhece o presidente Nuno Jacinto. “A nossa intervenção seria útil. Acredito que 40% das urgências deixavam de ser entupidas”, defende Manuela Pacheco, vice-presidente da Associação de Farmácias de Portugal.

No final de outubro arrancou o projeto que permite a renovação da medicação para doentes crónicos nas farmácias, que deixam de ser obrigados a ir ao centro de saúde para o fazer. Miguel Guimarães vê a iniciativa como “interessante” desde que exista “articulação entre o farmacêutico e o médico de família”, uma opinião que estende à proposta para que medicamentos hospitalares (para doenças como o cancro ou VIH, por exemplo) possam ser dispensados nas farmácias.

Mas a queda do Governo pode impedir o avanço das medidas, teme Helder Mota Filipe. “Espero que a situação política não faça com que tudo fique novamente congelado à espera da vontade dos próximos”, remata.

Escócia já trata doentes ao balcão

Poupar tempo e deslocações aos doentes, mas também evitar o congestionamento dos serviços de saúde é o grande objetivo do Pharmacy First. “O que este serviço faz é tentar tirar os doentes com situações clínicas comuns ou doenças ligeiras dos serviços de saúde para as farmácias, evitando que vão ao médico de família ou às urgências”, explica a académica Margaret Watson. O programa, criado no final de 2020, já fez mais de 5,5 milhões de consultas em farmácias e será, no início do próximo ano, alargado a todo o território do Reino Unido.

O serviço nacional de saúde britânico criou um protocolo com as farmácias comunitárias para permitir que, entre outras intervenções, prescrevam “antibióticos ou antivirais” para situações predefinidas — uma delas são as infeções urinárias simples em mulheres entre os 16 e os 65 anos, por exemplo. A professora Watson diz mesmo que os farmacêuticos podem ter um papel relevante na saúde pública, em particular “sinalizando os primeiros sintomas suspeitos associados ao cancro. Acredito que há grande potencial”, reforça.

Os desafios da farmácia comunitária

“A Revolução Silenciosa do SNS: Que desafios para a Farmácia Comunitária” foi o mote para a quinta edição do Pharma Call, organizado pela Tecnigen, a que o Expresso se associou como media partner, e que decorreu em Alcobaça. O evento juntou especialistas nacionais e internacionais do sector da Saúde.

Textos originalmente publicados no Expresso de 24 de novembro de 2023