Estão lançadas as primeiras pedras para a construção de uma União Europeia (UE) na saúde. Embora seja uma área de responsabilidade de cada Estado-membro, o deflagrar da pandemia, em 2020, recuperou a discussão e acelerou os esforços da Comissão Europeia (CE) para a partilha de responsabilidades também neste campo. O “grande impulso” dado pela covid-19 é visível, aponta Manuel Pizarro, em iniciativas como o Plano Europeu de Combate ao Cancro e o programa EU4Health, que visa reforçar os sistemas de saúde nacionais com 5,1 mil milhões de euros até 2027. “Faz falta para que [a UE da saúde] se torne uma realidade palpável para os europeus”, acrescenta o eurodeputado.
Tal como outros sistemas de colaboração transfronteiriça, as Redes Europeias de Referência, criadas em 2017, podem funcionar como uma ‘Interpol’ para as doenças raras. Quando surge, em qualquer ponto da Europa, um caso clínico complexo e de difícil resolução, os médicos podem recorrer a estas plataformas para pedir apoio de especialistas, tanto no diagnóstico como nos tratamentos. “Quando falamos de doenças raras, muitas vezes só se consegue valorizar os dados por agregação”, explica José Barros. O diretor clínico do Centro Hospitalar e Universitário do Porto (CHU Porto) acredita ser importante juntar “amostras [de dados] a nível nacional e europeu”, assim como a experiência de vários especialistas, para “obter mais conhecimento” em áreas em que a informação é, ainda, escassa.
Aliás, o centro hospitalar de que é responsável participa em 11 destas redes. Entre elas, a EuroBloodNet, dedicada às patologias raras na área da hematologia, que no CHU Porto é liderada por Graça Porto. “Há poucos casos [de doentes nesta área] e, portanto, há poucos peritos. É preciso que os doentes tenham acesso aos especialistas espalhados pela Europa”, afirma a hematologista do Hospital de Santo António. Apesar da rede estar a funcionar e ter tido avanços ao longo dos últimos cinco anos, ainda “está um pouco em estado embrião” — falta melhorar o acesso dos doentes aos ensaios clínicos e uniformizar os registos europeus de patologias raras, por exemplo. “Isto permite entender melhor as patologias, fazer estudos comparativos, prever a evolução da doença e definir terapêuticas”, realça Celeste Bento, investigadora no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Em aperfeiçoamento está também “uma plataforma de consultas nas redes europeias”, que permite a qualquer médico, em qualquer hospital, “descrever um caso clínico, colocar documentação sobre ele e convidar os peritos a ajudar a resolver”, descreve Graça Porto. É, depois, criado um grupo de especialistas que discute o caso e apresenta as suas opiniões profissionais. “O doente vai ter uma opinião do seu médico em Portugal mais as de vários peritos europeus, e isso faz uma grande diferença”, sublinha a médica, que se tem dedicado a explorar a hemocromatose, condição rara e hereditária.
Tal como a ciência, a saúde não conhece fronteiras e os cuidados prestados devem, defende a CE, estar acessíveis a todos os europeus. E para conhecer as suas necessidades é preciso ouvi-los. “É preciso vencer o paradigma de tratar os doentes com paternalismo, substituindo-o por um modelo de relação transparente, horizontal e participada”, advoga Manuel Pizarro. “Com estas redes, os doentes passam a fazer parte do grupo de indivíduos consultados para criar as orientações clínicas”, complementa a especialista da EuroBloodNet.
Portugal na periferia da saúde
Os centros coordenadores das 23 redes europeias estão concentrados em cinco países — Alemanha, Áustria, França, Itália e Países Baixos. Portugal não conta com nenhum. A “proximidade aos centros de decisão” é um elemento apontado por José Barros para justificar a distribuição geográfica, e acredita que “um dos nossos grandes hospitais pode vir a liderar” uma destas redes. Já Manuel Pizarro, habituado às lides comunitárias no Parlamento Europeu, considera que “Portugal tem recursos humanos qualificados, um sistema científico e de saúde” que tornam o país “apto” para assumir este papel. Celeste Bento vê na falta de desenvolvimento e de “forte apoio institucional” aos centros de referência nacionais a justificação para a ausência de centros coordenadores no país. Os peritos nacionais têm “grande conhecimento e experiência”, diz, mas “falta-lhes muito tempo para se dedicarem aos projetos”.
Desafios da investigação em patologias raras
Financiamento continua a ser a maior dificuldade para a produção de conhecimento científico, aponta investigadora do iBet
Desenvolver terapêuticas específicas para tratar doenças raras, que afetam cerca de 600 pessoas em Portugal e 30 milhões na Europa, implica investimentos avultados em investigação. Algumas das patologias afetam dezenas ou centenas de doentes, o que torna este mercado menos interessante do ponto de vista económico. “São doenças raras, não é fácil ter interesse [económico], porque a terapia vai tratar só alguns pacientes”, enquadra Ana Sofia Coroadinha. “A investigação é sempre um campo duro por causa dos investimentos”, aponta a investigadora do iBet e ITQB, responsável pelo desenvolvimento de terapias génicas para doenças raras. Ainda assim, a cientista explica que a maior fatia de financiamento surge “do sector privado”, enquanto a componente académica “é sempre mais complicada”. No caso do iBet, um dos institutos para os quais colabora, esse obstáculo é mais facilmente contornado por funcionar essencialmente com parcerias estabelecidas ao nível industrial com farmacêuticas. “Trabalhamos mais na parte aplicada [da investigação] e colaboramos a nível académico, mas também com empresas e startups que estão a desenvolver terapias”, esclarece.
No caso de Ana Sofia Coroadinha, as principais tarefas em mãos correspondem ao desempenho com vetores virais — veículos que transportam material genético para as células. “Estamos a trabalhar em colaboração com uma instituição em Inglaterra a distrofia muscular de Duchenne, que é uma doença rara que atinge os músculos”, exemplifica. Como os portadores da maleita têm uma mutação no gene responsável pelo desenvolvimento muscular, o objetivo é dar ao doente o gene corrigido.
Fomentar mais terapêuticas
Embora a União Europeia disponibilize programas de apoio à ciência, os projetos comunitários “são sempre muito competitivos e o investimento acaba dividido entre muita gente”. Para fomentar a criação de mais terapêuticas, a Comissão Europeia incentiva a indústria com isenção de taxas, apoio científico e a possibilidade de comercialização exclusiva durante 10 anos. Entre os vários programas de apoio disponíveis, destaque para o Horizon Europe, com uma dotação orçamental de €95,5 mil milhões, para apoiar a investigação científica em várias áreas, incluindo a saúde.
Doenças raras, pessoas únicas
O Expresso regressa ao projeto “Doenças Raras, Pessoas Únicas”, com o apoio da GSK. Em Portugal estima-se que existam 6 mil patologias diferentes que afetam 600 mil pessoas.
Textos originalmente publicados no Expresso de 3 de junho de 2022