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Resíduos de ananás e de banana, cânhamo e linho: novas fibras produzidas em Portugal vão mudar a moda europeia e promover economia circular

O projeto Be@t quer aproveitar o conhecimento da indústria têxtil portuguesa e transformá-la num setor circular e sustentável. Para isso, cria-se tecido feito com biomateriais, recicla-se as peças de vestuários já existentes e promove-se a descarbonização

Em 2020, o consumo médio de têxteis por pessoa na União Europeia (UE) provocava uma pegada carbónica de cerca de 270kg e o setor têxtil foi, nesse mesmo ano, a terceira maior fonte de degradação da água e de utilização dos solos, segundo a Agência Europeia para o Ambiente. A falta de sustentabilidade neste setor é um dos aspetos que o projeto Be@t pretende combater. Biomateriais, circularidade, sustentabilidade e sociedade são os quatro pilares de uma ideia que quer revolucionar a forma como se pensa a indústria têxtil.

Carla Joana Silva, doutorada em química têxtil e responsável do projeto iniciado em 2022, salienta o quão poluente pode ser a indústria têxtil e de vestuário — em especial devido à dependência de matérias-primas de origem fóssil, como o poliéster. O objetivo do Be@t, financiado por fundos comunitários através do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), é criar uma indústria nacional têxtil inovadora, sustentável e circular através do desenvolvimento de matérias-primas de origem orgânica e renovável. Até 2025, um dos maiores objetivos da iniciativa, liderada pelo Centro Tecnológico Têxtil e Vestuário (CITEVE) e que conta com um consórcio de empresas e entidades de investigação, é contribuir para que o fornecimento de matérias-primas regresse à Europa e aumente a segurança e rastreabilidade dos produtos têxteis.

A diretora do departamento de Química e Biotecnologia no CITEVE tem participado em vários projetos apoiados por fundos comunitários, como é o caso do ViBrANT, que estuda os processos de adesão bacteriana e viral de forma a desenvolver novas formas de combate a infeções, ou do SKINCAPS, que pretendia desenvolver vários dispositivos entre os quais roupas com capacidade de gerir o conforto térmico. Pela sua experiência, acredita que será possível a Europa tornar a sua indústria sustentável e circular devido a regulamentos que “vão forçar, a bem ou a mal, a indústria para ser uma indústria verdadeiramente sustentável e inovadora”.

Qual é a importância de ter uma bioeconomia têxtil para um país como Portugal?

É extremamente importante capacitar novamente a Europa e capacitar novamente Portugal para produzir fibras de origem renovável. Não faria sentido estarmos a produzir fibras de origem sintética, de origem fóssil, e temos todo o potencial na Europa para voltar a produzir algumas destas fibras, que já foram produzidas aqui, que são nativas daqui, como o linho ou o cânhamo. Mas temos a necessidade de fazer a transição para uma indústria com base em biorrecursos, renováveis em detrimento dos recursos de origem fóssil. E fazer a transição para uma indústria circular. Isto tudo consegue ser feito se tivermos produção local de fibras, em que conseguimos aproveitar todos os desperdícios gerados também durante o processo de produção das fibras. Por isso, no Be@t estamos a explorar a produção de fibras naturais alternativas ao algodão, nomeadamente cânhamo e linho, mas também outras com base em resíduos industriais, mas que sejam fibras naturais: resíduos da produção da banana, resíduos da produção do ananás, que acontece nas nossas ilhas. Ou até de plantas que são nativas e que têm um elevado potencial para ter fibras, como a urtiga, como o lúpulo, como uma série de outros resíduos agrícolas que estamos a explorar. Paralelamente, fibras de origem de madeira, o lyocell ou a viscose, que são obtidas através de um processo de hidrólise da celulose e que também são uma alternativa muito importante às fibras de origem sintéticas. Vamos ter essa capacidade instalada em Portugal, graças ao projeto Be@t e ao financiamento do PRR.

De que forma é possível ter um processo inovador e circular na indústria têxtil?

Creio que a resposta é olhar sempre com uma visão holística. Em tudo que fazemos, tentamos sempre gerar zero desperdício. Por exemplo, quando estamos a falar na questão da produção de cânhamo, nós testámos no projeto Be@t durante este ano duas culturas, uma no Norte outra no Alentejo. Estamos a estudar quer as espécies mais promissoras, quer também as questões de cultivo, nomeadamente a dependência de água, porque a cânhamo gasta muito pouca água. Mas, mesmo assim, na fase inicial é necessário. Os melhores terrenos, todos esses parâmetros... Mas depois, durante o próprio processo de colheita, até chegar à fibra têxtil, há uma série de etapas que se nós olharmos de uma forma holística conseguimos otimizar e introduzir a inovação.

A questão dos equipamentos é pertinente, mas também uma questão logo no início do chamado rating que é a individualização das fibras. Não existem processos, é muito empírico e nós estamos a tentar transformar este processo num processo industrializável, estudando a fundo quais são os micro-organismos envolvidos, quais as condições envolvidas. [O objetivo] é tentar padronizar, ter sempre a mesma qualidade e não estar a depender das condições atmosféricas e climatéricas, que serão cada vez mais variáveis. Por isso temos de ter processos industrializáveis, isto vai ter de acontecer em todas as etapas. Temos de olhar cada etapa processual e perceber que está a ser gerado um resíduo. Mas esse resíduo tem potencial de ser reintroduzido na cadeia de valor. Por exemplo, o produto da preparação do cânhamo para ser uma fibra gera alguns desperdícios, que podem ser usados para a funcionalização. Por outro lado, há uma parte que não é utilizada, que pode ser usada para construção, que é uma indústria adjacente e que permite a circularidade. Isto diminui a dependência do custo e aumentado a probabilidade de sucesso dos desenvolvimentos. Por isso, creio que esta visão holística é sempre a solução para conseguirmos alcançar com resultado os nossos desenvolvimentos.

Que objetivos já conseguiram implementar e o que falta ainda fazer no projeto Be@t?

O grande desafio em 2023 foi também a questão das autorizações legais. Estamos aqui a falar de cânhamo industrial, é um cânhamo mesmo específico para a produção de fibras. Tem um baixo teor TH mas, mesmo assim, em termos de requisitos legais há ainda uma grande burocracia associada à cultura destas plantas. Este ano já foi muito mais expedito, já conseguimos cultivar também no Norte e perceber que há vantagens em alguns aspetos. Obviamente que uma das questões tem que ver com a extensão dos campos, que são mais fracionados, [enquanto] no Alentejo serão as extensões mais planas. Portanto há uma série de benefícios em cada um dos locais, mas já conseguimos ter uma quantidade superior e perceber; estudar diferentes condições para que, no próximo ano, consigamos ter uma quantidade já industrializável e já processada nos equipamentos. Entretanto, em paralelo, estamos a equipar a nossa indústria têxtil nacional com equipamentos para processar estas fibras.

O consumidor tem a consciência de que é preciso consumir de uma forma diferente e procurar têxteis mais sustentáveis?

Pela primeira vez — e eu faço investigação há muitos anos, nomeadamente em projetos europeus —, temos um projeto de investigação com uma componente da sociedade muito forte. Decidimos incluí-la porque é urgente também educar e informar o consumidor. Muitas vezes não é culpa da sociedade nem do consumidor. Infelizmente, nós estamos sujeitos a muitas green claims que são [feitas] sem fundamento científico. Muitas vezes é muito difícil para o consumidor perceber o que é um produto sustentável ou como é que eu posso fazer compras mais sustentáveis. Aí o passaporte vem ajudar, como é óbvio, mas além disso há todo um trabalho que tem de ser feito.

É, por isso que, no projeto Be@t, estamos a ter várias iniciativas. Por um lado, para educar, estamos a criar diversos conteúdos, a criar diversos mostradores, e a tentar chegar à população mais jovem, às crianças — que são as que têm maior capacidade de fazer essa transição. Se é verdade que já temos um grupo, um nicho de consumidores mais conscientes, ainda é uma pequena fração. Tipicamente são os consumidores mais jovens, que já começam a ter esta preocupação e que percebem que a fast fashion, não é solução. Por outro lado, também são esses consumidores que muitas vezes são capazes de comprar uma t-shirt de uma banda só para ir a um concerto e que no fim descartam, ou que são capazes de mandar vir um vestido de 100% poliéster para uma festa e que depois, no fim, o descartam.

Temos de olhar para estes nossos hábitos de consumo de outra forma e perceber que têm uma pegada ambiental muito significativa. A mensagem não é ‘vamos deixar de consumir roupa e vamos deixar de comprar’. Não é essa a questão. Mas quando compramos devemos tentar usar o máximo possível, e procurar outras alternativas de fim de vida: lojas de segunda mão, reciclar — a partir já deste janeiro vai ser proibido enviar para aterro —, transformar em produtos novos. Há muitas alternativas e novos modelos de negócio que estão a aparecer para promover a durabilidade destes produtos.

A União Europeia está a tentar preparar-se para atingir a circularidade e a sustentabilidade na indústria têxtil e de vestuário?

Não tenho dúvidas nenhumas. E, se dúvidas existissem, a verdade é que neste momento estão [em vigor] 16 regulamentos a nível europeu específicos para a indústria têxtil. Estamos a falar desde a conceção ecológica dos produtos — que envolve também o passaporte digital do produto, que é um dos requisitos que vai ser obrigatório que cada produto têxtil tenha todo o impacto [discriminado], portanto, desde o consumo de água, de energia, de produtos químicos, a rastreabilidade na cadeia de valor, onde foi feita cada etapa —, o que fazer em fim de vida, formas de reparar também.

[Há também] a legislação REACH, que tem banido vários produtos químicos, que de alguma forma também são prejudiciais para o meio ambiente. [E] a questão do Green Deal, porque temos de atingir determinados parâmetros em 2030 e em 2050. Portanto, a Europa está a trabalhar numa série de regulamentos e diretivas que, em paralelo, vão forçar, a bem ou a mal, a indústria para ser uma indústria verdadeiramente sustentável e inovadora. Portugal é o único país da Europa que manteve a cadeia de valor completa, temos tudo muito próximo — em particular aqui na zona Norte, que é mais forte também em termos de indústria têxtil. Isto permite-nos também uma produção local, mais sustentável. Portugal está conotado com uma forte sustentabilidade e estamos a ser procurados por países do norte da Europa, e até pelos Estados Unidos e outros países, quando procuram sustentabilidade. Estão a deslocar-se e estão a produzir em Portugal porque há a garantia de que a produção vai ser mais sustentável.

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