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Nas notas de rodapé está uma das armas contra a desinformação

A educação, a regulação, as fontes de informação fidedignas e o papel das instituições são algumas das chaves para combater a desinformação e os riscos da inteligência artificial. O debate que o INATEL de Évora acolheu esta quinta-feira nos 50 anos do Expresso, lançou inquietações e apontou caminhos.

António Gomes, Manuel Carvalho da Silva e João Vieira Pereira analisaram os desafios da desinformação
Ana Baiao

Marina Almeida

O debate aconteceu no dia em que o Bard, o chatboot da Google chegou a Portugal. Um novo capítulo na inteligência artificial (IA), que deu renovada atualidade a esta realidade que vem minando o debate e entrando nos usos. A educação, ensinar a certificar informação, a distinguir factos de opinião foi uma das tónicas enfatizadas entre os oradores. “O que se perdeu neste tempo foi a importância da nota de rodapé”, acentuou Henrique Raposo, escritor e cronista do Expresso.

A ideia acabaria por se tornar transversal aos dois painéis de discussão do debate “Inteligência artificial e desinformação: os novos desafios para a opinião pública” que decorreu no Palácio do Barrocal, a sede do INATEL em Évora. No primeiro, mais direcionado para a inteligência artificial e os desafios para a opinião pública, Arlindo Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico, foi perentório: “Ensinámos as pessoas a ler e a escrever, agora temos de ensinar como validar informação”. O investigador disse não ter dúvidas de que a tecnologia vai continuar a evoluir, possibilitando, entre outras coisas, gerar imagens e vídeos com facilidade. No entanto, para a poder usar, não chega entregar-se à tecnologia. É preciso ter conhecimento e dominar algumas competências: “não basta perguntar ao oráculo”, acentuou.

Gustavo Miller, responsável pelo marketing da Defined.ai, empresa que desenvolve programas de IA em português, lembrou que este não é um fenómeno novo, apesar de estar no topo dos debates nos últimos meses, dando como exemplo as sugestões automáticas de séries na Netflix ou de músicas no Spotify. Considerando que a IA é um processo semelhante à implementação do computador portátil, trazendo tecnologia para dentro de casa, e colocou a tónica na regulação, mas também em cada indivíduo: “As pessoas estão mais conscientes do que vestem, do que comem, como estão ligadas a empresas em sintonia com os seus valores. A indústria deve criar guidelines e as pessoas escolher as empresas com que mais se identificam”, referiu.

No segundo painel, focado na desinformação, o sociólogo Manuel Carvalho da Silva disse que a Inteligência artificial é contemporânea de uma sociedade fragmentada, robotizada, que enfrenta desafios climáticos, de democracias, e que a análise tem de ser feita tendo em conta este contexto. O investigador do Centro de Estudos Sociais frisou que a polarização favorece a desinformação, defendendo a importância de estruturas de intermediação: “Para haver democracia é necessário haver intermediação. Podem ser instituições de diversas ordens, que sejam espaços de diálogo.” Ideia corroborada pelo diretor do Expresso, João Vieira Pereira, para quem o reforço das instituições é “absolutamente essencial” para combater a desinformação.

Otimista, António Gomes, diretor-geral da GFK Metris, acredita que “a IA pode ser utilizada para tornar as democracias mais transparentes”. O responsável por estudos de opinião em diversas áreas há três décadas disse acreditar que os portugueses têm uma enorme dose de bom senso e têm tendência a ser prudentes. Não descartou, no entanto, os riscos das subtilezas, da “máquina poder produzir textos que podem dar uma propensão a uma determinada narrativa”. Para isso, também relevou a importância da regulação.

Importância da memória

João Vieira Pereira focou o debate nas práticas jornalísticas, na velocidade com que a tecnologia avança, não dando tempo para a adaptação das sociedades. O responsável editorial do Expresso disse que os jornalistas são especialistas em desinformação, e que lidam em permanência com fontes que têm agendas. Voltou à ideia lançada por Henrique Raposo, da prioridade às fontes credíveis e da atenção às notas de rodapé, onde se detalha de onde vêm os dados, questionando. “Como fazer com que as pessoas questionem mais a informação?” do seu dia a dia, em gestos banais, não a tomando como garantida, acentuou. O papel da imprensa é fundamental, mas cada um tem de assumir também este papel.

O diretor do Expresso referiu ainda que há vários órgãos de comunicação social em Portugal com uma situação frágil, e isso também coloca em risco a democracia: “tem de haver uma reflexão não política sobre como financiar os órgãos de comunicação social”, defendeu.

Francisco Madelino, presidente do INATEL, acolheu o debate no salão nobre do Palácio do Barrocal. Também ele sublinhara a importância da intermediação, tradicionalmente entregue aos órgãos de comunicação social, e da informação livre: “sem informação livre não há democracia”. E lembrou ainda a importância da memória.

O debate sobre inteligência artificial e desinformação decorreu horas depois da inauguração da exposição itinerante dos 50 anos do Expresso, no Jardim Público de Évora. As 50 capas do jornal, um percurso pela história do país e do mundo, está patente nos próximos dias, com o QR Code a dar acesso aos podcasts que recordam o que de mais relevante se passou em cada ano.

Arlindo Oliveira, Gustavo Miller e Henrique Raposo no primeiro panel, moderado por João Miguel Salvador, do Expresso
Ana Baiao

Principais conclusões:

  • A educação é fundamental para lidar com as ferramentas de inteligência artificial. Aprender o que é uma fonte credível de informação, onde a encontrar, como saber se está perante um facto ou uma opinião é um trabalho que é urgente ser feito.
  • O papel das instituições deve ser reforçado e central neste processo acelerado de transição digital. Manuel Carvalho da Silva repetiu a palavra intermediação, referindo a importância da construção de instrumentos coletivos e que “o decidir, o cuidar, precisa de mão humana”.
  • A desinformação não é nova, o que são novas são as ferramentas usadas, a velocidade de propagação e o número de pessoas alcançadas.
  • A regulação é urgente e deve ser assegurada pelo Estado e pelas instituições europeias. No entanto, o empenho de cada indivíduo no seu dia a dia, no olhar crítico sobre a informação que recebe, é essencial.