Geração E

A música em tempos de IA: como um “Popotão Grandão” de 2022 se transformou num hit dos anos 80

Era mais fácil acompanhar o topo a partir da rádio. É complicado estudá-lo a partir de algoritmos e focando em redes sociais que privilegiam partes de canções. O objetivo já não passa por produzir um tema imaculado de três minutos. Essencial é entregar 30 segundos de qualidade

Os pais são exigentes. Generalizo – a crónica começa mal. Continuo e especifico. Os pais são exigentes quando escutam música selecionada pelos filhos. Quase sempre, quando o tema escolhido pela parte mais fraca é dos dias de hoje, o pai torce o nariz – e, de um modo mais ou menos vocal, desconsidera, com mestria que tira do sério, a aptidão musical das novas gerações.

– Isto é autenticamente anos 70.

– Mas foi lançada na semana passada.

– Outra.

Portanto, mais vale escolher temas de outro tempo, de qualidade testemunhada, que resultam sim ou sim.

Escrevo o pai porque escrevo a pensar no meu e nas vezes em que a «Uncertain Smile», dos The The, destrói as colunas do carro em que seguimos. Existem outros temas destruidores, mas este, de 1983, destaca-se. Destaca-se porque o solo de piano é estrondoso. Destaca-se porque nos une.

Não pretendo que a crónica se debruce sobre a passagem inexorável do tempo, mas, a partir do momento em que discorro sobre Música, é inevitável. O que é a música senão a mais bela forma de que dispomos para viajar no tempo? Até ver, é a única que temos. Nada má. Aliás, o que é a música senão uma das várias manifestações do tempo? Ela começa e acaba. Assim, iniciado o solo de piano de «Uncertain Smile», chego a 1983, sem sair do espaço e do tempo em que me inscrevo. Só o carro avança.

Os clássicos, independentemente do grau de popularidade, caracterizam e representam épocas. Cada geração tem os seus. E cada geração é incapaz de identificar – no presente e com total certeza – os clássicos que serão relembrados. Só pode ter uma ideia. O juízo, espinhoso e particularmente dado a subjetividades, faz-se sempre no futuro.

A geração a que pertenço – e que me atira para esta coluna – está já tramada. Não tem culpa; é prejudicada pelo streaming desenfreado e pela intensidade da viralidade, responsáveis pelo surgimento das novas músicas que chegam ao topo. As regras da pop não mudaram. (Continua a produzir-se muito – e para a eternidade ficam só os sucessos.) O que mudou é o ritmo com que a pop se consome. Fast. Era mais fácil acompanhar o topo a partir da rádio. É complicado estudá-lo a partir de algoritmos e focando em redes sociais que privilegiam partes de canções. O objetivo já não passa por produzir um tema imaculado de três minutos. Essencial é entregar 30 segundos de qualidade. Fast-music, é isso.

Os ouvidos estão menos criteriosos – a capacidade de escutar sofre com o aumento da procura e da oferta musicais, que é regulado pelo Instagram Reels e pelo TikTok. Os ouvintes deixam-se levar por meros sons. Agora, nem o single, que enterrou o LP, pode estar descansado – já está contaminado. O estado da indústria musical é o próprio vírus. Poucos são os que se interessam pela cura. A doença rende. Os produtores seguem ordens superiores e encurtam e encurtam e encurtam canções. E o resultado é frustrante. Um exemplo concreto em honra da máxima de Joyce: no longínquo Verão de 2024, Dominic Fike, ator e cantor norte-americano, lança a «misses», canção com um minuto e quatorze segundos. É gira e tal, mas ainda estou à espera do resto. Ouvi-la é como comer um cheeseburguer preparado por uma multinacional: sabe bem (apesar de não saber a nada) e vicia.

A pop é simples. O que agora bate amanhã está esquecido. Era assim em 1983. É assim hoje. A diferença entre 1983 e hoje é que, há 40 anos, existiam menos formas de escutar mais música, logo os novos lançamentos perduravam. No TikTok (no meu, pelo menos – esta é outra questão), tem estado viral um som, que é um áudio, que é um mashup da «In Da Club», de 50 Cent, com a «Forever», de Alex G. Dou-lhe uma semana de louros, mas sou justo, já que lhe reconheço a mão humana. Foi realmente feito por um miúdo (mc cece), que trocou o barulho da garagem da casa dos pais pelo silêncio do quarto. Ao menos não é feito por AI, ao contrário de duas canções brasileiras que recriam o verdadeiro baile funk (o original dos anos 80).

Peço desde já desculpa à equipa fundadora do semanário – «Predador de Perereca», de 2022, e «Popotão Grandão», de 2018, produções de qualidade questionável, transformaram-se em música que apetece realmente ouvir, como indicia a sempre confiável tabela do TikTok. As canções são mais meme do que arte, porém. É o que se depreende da reação das pessoas, que alinham na piada: «Saudade dessa época onde só havia romantismo e não essas safadezas de hoje em dia», lê-se no YouTube. Que nunca percamos a nossa graça natural.

Não dou os parabéns à AI (porque desconfio dela), mas dou-lhe esta: só programas de inteligência artificial conseguem remisturar tamanha trampa. É questão de paciência – e não de qualidade; artistas e produtores de carne e osso conseguiriam fazer o mesmo. Alguns já desistiram, preferindo fazer música a partir de prompts. É bom momento para perguntar, então, who the fuck are The Velvet Sundown. Feita também a referência aos Arctic Monkeys de 2006, a explicação: é uma banda de inteligência artificial que, em apenas um mês, teve mais de 300 mil ouvintes, contando atualmente com mais de um milhão de ouvintes no Spotify.

Tudo soa mal em The Velvet Sundown, mas gostos são gostos e opinião não é autoridade. Mesmo assim, não tenho problema em apontar a falta de critério: atiraram a psicadélica para uma máquina trituradora et voilá. Alma, nem vê-la. Os de língua inglesa diriam que a música dos The Velvet Sundown é sloppy. Sendo portugueses, podemos dizer que é foleira, à semelhança das restantes produções de AI que insistem em substituir a humanidade no processo de fazer música. Pelo meio, gozam connosco e testam a nossa capacidade de distinguir a mentira e a verdade, já que nem sempre se apresentam como projetos com inteligência artificial na base.

Nesta fase, tem-se ainda noção de que o que é feito apenas a partir de máquinas tem um valor diferente do que é feito pelo músico que investe tempo em busca de novas expressões. Não será assim para sempre. (Eu sei lá.) Em breve, os feitos serão equiparáveis, porque os ouvintes terão pouco interesse em conhecer a origem da criação. Viver cansa menos quando não se é pautado pela curiosidade.

A AI, como a nova coqueluche da tecnologia, vai certamente triunfar na música, assim como noutros campos criativos. A tecnologia nunca perde. Triunfo que não surpreende, respeita a vontade de um tempo impaciente, que quer tudo mais rápido e para ontem. As possibilidades são inimagináveis. A AI poderá vir a fazer a melhor música com apenas 30 segundos. Temas de 10 minutos, com solos de piano que se estendem e surpreendem, são coisa do passado. De 1983.