Geração E

Anne Isabella Coombes e o seu ativismo trans de chapada de luva branca

Só envolvendo diretamente as pessoas trans na política é que teremos as perguntas certas para chegarmos a respostas eficazes e eficientes que não só quebrem o preconceito contra as pessoas trans, como também criem diretrizes para a sua proteção e inclusão social

Não é novidade nenhuma que as questões trans estão a ser instrumentalizadas pelas políticas de extrema-direita, que atribuem um perigo indevido à comunidade trans, quando, na verdade, quem está em maior perigo no clima da crescente presença da extrema-direita é, efetivamente, a própria comunidade trans. Uma das demonstrações mais recentes deste preconceito descabido é o facto da administração de Trump ter anunciado que deixaria de financiar a linha telefónica de prevenção do suicídio direcionada para a comunidade LGBTQ. A administração considerou que o serviço apoiava uma “ideologia de género radical”. Ora, como é que cuidar de pessoas pode ser considerado radical? A vida de uma pessoa tem o mesmo valor, independentemente da sua orientação sexual ou identidade de género. Importa referir que atentativa de suicídio entre pessoas trans vai dos 32% aos 50%mundialmente. Neste panorama, a probabilidade de tentativa de suicídio é bem maior se não houver a aceitação por parte da família. Em 2022, foi reportado pelo The Guardian, que mais de 50% das pessoas jovens trans e não-binárias dos Estados Unidos consideraram o suicídionesse ano. Como é que com dados assim, Trump decide acabar com a linha telefónica de apoio? Só há uma explicação: para ele, as vidas LGBTQ não importam.

Como nos escreve Judith Butler no seu mais recente livro “Quem tem medo do género?”, a instrumentalização da expressão “ideologia de género” está a ser usada como uma arma para desviar o assunto das conversas e encontrar um bode expiatório para todos os problemas sociais, sem que haja, sequer, da parte da extrema-direita que usa de arma, um esforço em perceber o que realmente significa “género”. Este assunto foi igualmente comentado por Guadalupe Amaro no evento House of Beauty da Máxima.

Recordo — como o fiz na minha crónica“Há perguntas que não se devem fazer a pessoas trans” — as terminologias: pessoas cisgénero são pessoas que se identificam com o género que lhes é atribuído à nascença; pessoas trans são pessoas que não se identificam com o género que lhes é atribuído à nascença. Assim, por exemplo, uma pessoa que quando nasce é denominado do sexo masculino e se identifica como homem é um homem cis; pessoa que nasce com vulva e se identifica como homem é homem trans. Ser trans não é uma doença mental nem um distúrbio, é uma característica de identidade de género.

Além disso, a presença de questões trans em narrativas televisivas ainda se cingem, regra geral, às notícias quando houve violência contra a comunidade, ou com conversas limitadas a perguntas como “que casa de banho devem usar” ou “em que categoria devem concorrer no desporto”. Nesta crónica, para além desta nota introdutória, apresento um estudo de caso real — a participação de Anne Isabella Coombes, mulher trans de 67 anos, que participou na última Cornwall County Masters Championship — e abro a discussão sobre o típico discurso público sobre a comunidade trans e deixo desafios.

Como noticiado pela Out Magazine, Anne Isabella Coombes, mulher trans, foi obrigada a competir contra homens na última competição de natação Cornwall County Masters Championship. Dado isto, num formato de chapadinha de luva branca, Anne Isabella Coombes nadou com calções de banho masculinos e topless. Se estava a ser considerada homem pela organização, apresentou-se como os homens que na mesma categoria concorriam. Claro que tal não agradou a organização da competição que, mesmo na categoria masculina, queria que Coombes competisse como um fato de banho feminino. Então, afinal, em que é que ficamos? Em questões de objetificação sexual, o corpo dela era visto como feminino pelas pessoas heteronormativas, mas para a competição era vista como homem? Haja paciência, aliás, coerência, aliás, empatia.

Acerca do medo irracional da população cis de que não será justo uma mulher trans concorrer com mulheres cis, e o mesmo para homens trans com homens cis, em competições desportivas, a pergunta que deixo, e sobre a qual Coombes deambula, é: Por acaso, estamos a ver os pódios das competições a serem conquistados por pessoas trans? Não. Assim sendo, como afirma Anne Isabella, este é, pelo menos por enquanto, um não-problema.

Ora, se me perguntarem se acho justo ou não que as pessoas trans concorram na mesma categoria com pessoas cis do mesmo género, eu faço outra pergunta: como é que podemos tornar o mundo mais inclusivo para toda a gente? Não estaremos a fazer as perguntas erradas? Não estaremos a deixar fora da discussão as próprias pessoas trans a quem estas políticas afetam diretamente?

Eu, como pessoa cisgénero, não tenho as respostas nem as devo ter. No entanto, tendo um lugar privilegiado em termos de alcance público e, fazendo parte da comunidade LGBTQ, é importante demonstrar o meu apoio. É urgente dar lugar de fala a pessoas trans, criando pontes de diálogo entre quem tem poder de decisão e as pessoas trans. Aliás, idealmente, estaríamos mais perto de um estado de justiça social e representatividade se houvesse pessoas trans em cargos de decisão, como é o exemplo de Erika Hilton, deputada federal brasileira.

Só envolvendo diretamente as pessoas trans na política é que teremos as perguntas certas para chegarmos a respostas eficazes e eficientes que não só quebrem o preconceito contra as pessoas trans, como também criem diretrizes para a sua proteção e inclusão social.

Dito isto, convido todas as pessoas com cargos políticos com poder de decisão que queiram debruçar-se sobre questões que afetam diretamente a comunidade LGBTQ, a fazerem-no diretamente com pessoas da comunidade. Só assim chegaremos a algum lado profícuo.

Para quem não está nesses lugares com poder de decisão, o que poderemos fazer? Perceber que o poder está no povo: dar chapadinhas de luva branca, como Coombes; promover e ir a manifestações; fazer demonstrações de repúdio — como o fizeramLaura Falésia e André Tecedeiro aquando a apresentação de um livro anti-LGBT na Feira do Livro —; apoiar associações de apoio à comunidade LGBT; seguir apoiar projetos de pessoas ativistas LGBTQ; empregar pessoas da comunidade; e partilhar o trabalho de pessoas da comunidade. As minorias juntas são a maioria.