A Europa fez-se com os pés. O caminhante é tão europeu quanto a bandeira da União. De Santiago de Compostela a Viena, encontramo-lo e reconhecemo-lo, com um mapa na mão. Talvez da Google e no telemóvel, esse.
Até que se senta num café, ato tão ou mais europeu. Foi George Steiner quem deu a dica: “desenhe um mapa dos cafés e terá os marcadores essenciais da ideia de Europa”. Diálogo. Ideias. Confrontação. Em séculos de chumbo, foi nos cafés que se sentou a oposição clandestina – ou os receosos do rumo das coisas.
Exemplo: a figura de Salazar brotou em Braga, do salão de jogos do Café Vianna - foi lá que os militares planearam o 28 de maio, que derrubou a Primeira República e semeou o Estado Novo. Décadas mais tarde, o Grupo dos Nove reunir-se-ia para costurar o 25 de novembro entre copos de whiskey e pipocas temperadas a sal e pimenta. Foi na mesa dois do Procópio, em Lisboa. Eram tão habituais quanto os móveis ingleses.
O relato é de Alice Pinto Coelho, matriarca do bar onde Juvenal, o barman diplomata, sabia o número exato de pedras de gelo na bebida de Francisco Sá Carneiro. Se as histórias são feitas de encontros, a História é feita de encontros em bares e cafés. Mas o essencial é a ideia que salta: é no encontro que a vida e os acontecimentos seguem o seu rumo natural. Não no isolamento; na reclusão. Na vida construída a feed e posts – a régua e esquadro – nas redes sociais. Essas foram e são uma libertação para muitos. Eu incluído, do tanto acesso que tive a pessoas, sítios e ideias que nunca me chegariam pela mão. O que está distante, quando há semelhança, também nos aproxima.
Mas com menos força. Há que dizê-lo: os encontros vazios de assunto fazem falta; as tertúlias cheias de assunto fazem falta. O ser humano é gregário, social, talhado para se juntar ao outro. A autoajuda, muitas vezes associada à crise de saúde mental dos jovens, precarizados no trabalho e parcos em tempo e boas companhias, está em procurar o outro.
Em ser ouvido, e ouvir o que o outro lhe tem a dizer. Na última crónica, explorei a atração de muitos jovens pelo populismo. Do bem que lhes soa uma identidade e um grupo que contesta o sistema – “eles” -, quando não existe um propósito nem fundações que ordenem as suas vidas. Hoje debruço-me sobre outra origem: o desligamento.
Cada um convertido num “empresário de si próprio”. A expressão é do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, autor de livros badalados que contestam vários aspetos do hoje: o culto da resiliência, a obsessão com o desempenho e a competição desenfreada que leva a um processo inevitável de separação. Há o eu e há o outro, tornado competidor. Adversário.
Acontece que há no ser humano uma propensão para o propósito. Para o conforto de saber o que fazer e onde chegar. Agora nas palavras de Foucault, numa certa “sociedade da disciplina”. De convicções mais partilhadas do que individuais. De mais coletivo e menos indivíduo. Aspetos a que o capitalismo, para mal dos seus defensores, como eu, deu demasiado palco. Incentivou, entrando na cultura do dia-a-dia e da visão de cada um sobre si mesmo; os seus limites e potencialidades; o seu propósito. Em tudo isso a volatilidade.
Essa que coloca muitos jovens à mercê de uma proposta: destruir. Fácil, barato e com um mundo novo à vista. Mais previsível, ordenado e, assim, facilitado. Uma promessa de vários para a libertação de cada um.
Auxiliada pela velocidade frenética das redes — e da própria sociedade. Quanto mais velocidade, maior é a chance de bater com o carro. No caso, a sociedade. Contra a “verdade” que chega a muitos jovens pelo algoritmo. Essa que outros, é claro, desconhecem, “comendo a palha que o ‘sistema’ lhes dá para que não questionem”. Para que a conheçam, há que lutar – pensam eles. Há que destruir e construir de novo, com alicerces mais fortes. Cada um na luta, em cada um dos seus quartos, com um telemóvel na mão. Dá que pensar.
Muitas das crises que passamos são de modos. Porque nos esquecemos de onde estão os outros, até que nos partam a porta de casa.