Geração E

Caros membros do Habeas Corpus: a comunidade LGBT não é um perigo, nem para as crianças, nem para os jovens, nem para os avós

A homossexualidade sempre existiu, mais escondida ou com mais liberdade, e sempre existirá, quer gostem, quer não. A homossexualidade não magoa ninguém, não mata ninguém, não faz mal a ninguém. São o preconceito, a exclusão social, a homofobia e a transfobia que magoam as pessoas e que se podem tornar uma carga mental tão grande que pode levar a que elas sofram de violência de outras pessoas ou de elas mesmas

No passado dia 13 de março, vários membros do Habeas Corpus — grupo de extrema-direita contra os direitos LGBT+ — invadiram mais um evento, a Conferência "Igualdade em Construção: Os Direitos Humanos das Pessoas LGBT+", que aconteceu na Ordem dos Advogados.

Relembro que este mesmo grupo organizou várias interrupções de eventos, usando o mesmo tipo de discurso de ódio contra a comunidade LGBT+, como por exemplo:

A Apresentação de livro infantil sobre Rui Nabeiro interrompida pela extrema-direita

A apresentação de livro “Mamã, quero ser um menino!”

A apresentação de livro infantil: as imagens do momento

Dada a sua obsessão contra uma comunidade que em nada afeta a existência deste grupo de pessoas, tenho várias questões a colocar ao Habeas Corpus, considerando a intervenção não autorizada que fizeram no evento referido:

Em todas as vossas ações, quer de forma descritiva quando apresentam as vossas “intervenções” nas redes sociais, quer em vários eventos, o Habeas Corpus diz que é contra a existência da comunidade LGBT+ porque querem que “deixem as crianças e jovens em paz”. Ora, a homossexualidade não se ensina, nem é contagiosa. Se assim fosse, toda a gente com pais heterossexuais sê-lo-ia também, o que nem sempre acontece. A homossexualidade é uma mera característica, sendo tão simples quanto este exemplo: há homens que se sentem atraídos por mulheres, outros sentem-se atraídos por homens. Por que razão vos interessa tanto com quem se relacionam romântica e sexualmente as pessoas à vossa volta? Como se justifica esse medo da homossexualidade?

A homossexualidade não é uma doença, não é uma condição médica, para além de não ser uma escolha. Ninguém escolhe ser homossexual. Nenhuma mulher acorda e decide “a partir de hoje só gosto de mulheres”. As pessoas gays e lésbicas não andam à caça de pessoas para “converter” à homossexualidade. Não é um culto, não é uma seita, não é uma religião, não é uma doutrina. É, meramente, uma característica. Agora, poder-me-iam perguntar: “se é uma mera característica, por que razão fazem tanto alarido com marchas, eventos e manifestações em prol dos direitos LGBT+?” Porque há uma História grande de preconceito contra a comunidade e é importante relembrar quem luta, quem lutou e quem tem de lidar com esse preconceito diariamente. É importante haver orgulho coletivo, apoio coletivo, proteção coletiva. Enquanto houver homofobia, enquanto houver estas demonstrações de ódio, vai continuar a ser sempre relevante fazer mais eventos para falar sobre os direitos da comunidade. Por consequência, caro Habeas Corpus, se fizessem menos demonstrações de ódio, menos necessidade haveria de se escrever sobre os direitos LGBT+ tão regulamente.

Genuinamente, queria perceber que diferença vos faz o facto se um homem se deita com outro homem em vez de uma mulher; qual é o problema de uma mulher se apaixonar por outra mulher; e o que muda nas vossas vidas por haver pessoas trans. Não é por haver pessoas homossexuais que deixa de haver pessoas heterossexuais. Não é por haver pessoas trans que deixa de haver pessoas cisgénero (pessoas que se identificam com o género que lhes foi atribuído á nascença conforme o genital com que nasceram). Serem contra a existência da comunidade LGBT+ não faz com que a comunidade deixe de existir. O argumento que usam sobre as pessoas gays e lésbicas não poderem procriar nem faz qualquer sentido. Há inúmeros casais heterossexuais a passar por problemas de infertilidade. Querem inviabilizar a sua existência? Sempre houve pessoas heterossexuais que nunca casaram ou que nunca quiseram ter filhos. Querem obrigá-las a ter filhos? Vão fazer campanhas para o Vaticano permitir que os padres católicos se possam casar? (Deixo esta última boa ideia.)

O Habeas Corpus e os seus apoiantes continuam incessantemente a catalogar as pessoas LGBT+ como um perigo, quando, na verdade, quem está em constante perigo é a comunidade. As pessoas LGBT+ são muitas vezes expulsas de casa, julgadas pela família, maltratadas nas escolas, vítimas de preconceito por parte de profissionais de saúde e em contexto laboral, meramente por fazerem parte da comunidade.

Nunca houve ninguém rejeitado pela família por ser cisgénero e hetero (e ainda bem, porque toda a gente merece saber o que é o amor incondicional da família). Repito, as pessoas da comunidade não são perigosas, as pessoas da comunidade estão em perigo.

Aproveito para dizer que o diálogo cansativo sobre as casas de banho e as pessoas trans é inócuo: atualmente, se um homem quiser entrar na casa de banho feminina entra só, não é preciso ser trans. Não há como saber que genitais a pessoa tem, é algo privado. Mais ainda, para além do género e do sexo, existe a expressão de género. Ou seja, uma mulher de cabelo rapado e vestida com roupas tidas como masculinas pode ser percecionada, de forma errónea, como sendo um homem, quando é mulher.

Além disso, um dos vossos “intervenientes” disse, e passo a citar, “A construção social que está aqui a ser feita é baseada em mentiras científicas, sociológicas que normalizam a homossexualidade”. Meus caros, a homossexualidade estava normalizada na Grécia Antiga, não se trata de “uma modernice”. A homossexualidade sempre existiu, mais escondida ou com mais liberdade, e sempre existirá, quer gostem, quer não. A homossexualidade não magoa ninguém, não mata ninguém, não faz mal a ninguém. São o preconceito, a exclusão social, a homofobia e a transfobia que magoam as pessoas e que se podem tornar numa carga mental tão grande que pode levar a que elas sofram de violência de outras pessoas ou de elas mesmas. Não é a homossexualidade ou o facto de alguém ser trans que potencia a idealização suicida e ou o suicídio, é a homofobia da sociedade em geral e da família. A homossexualidade não mata, é a homofobia que mata.

Dito isto, caros membros do Habeas Corpus, acho a vossa fixação na comunidade LGBT+ muito curiosa. Tendo em conta que desejam com firmeza que esta deixe de existir, parece-me, no mínimo, irónico que gastem tanto do vosso tempo a pensar nela. Ora, reflitam comigo: os membros do Habeas Corpus procuram teorias para apoiar os seus argumentos; trocam mensagens diárias sobre o assunto no Telegram e outras redes sociais; escrevem artigos no seu blog; fazem uma lista mensal de “Terroristas LBGT+” (aproveito para agradecer as listas de pessoas inspiradoras com um mini currículo das mesmas); procuram eventos relacionados com o tema; organizam-se para ir ao eventos; invadem os mesmos; gravam as vossas intervenções e ainda as comentam nos referidos grupos de Telegram. Como é que têm tanto tempo para esta atividade voluntária? Desde já vos garanto que a comunidade LGBT+ não vai deixar de existir só porque vocês querem muito, muito, muito, que ela deixe de existir. É energia gasta em vão.

Outro ponto que também é relevante mencionar é o facto de parecer que há alguma confusão mental, por parte dos membros do Habeas Corpus, sobre o que significa um “evento aberto ao público”. Ora, um evento deste carácter tem uma organização a ser respeitada, tem um espaço aberto a perguntas, havendo uma noção base de respeito que se pressupõe existir no público. Uma conferência aberta ao público na Ordem dos Advogados não é um parque de diversões para crianças, com insufláveis em que podem gritar e atirar-se à piscina de bolas. Imaginemos, a título de exemplo, que existia um jogo de futebol aberto ao público, com entrada gratuita, até que fosse atingido o limite máximo de espectadores. Neste contexto, não seria aceitável que, de repente, o público entrasse em campo para jogar com os/as futebolistas, certo? Desta forma, interromper um evento de forma disruptiva não é aceitável.

Dito isto, penso que o Habeas Corpus deveria fazer um agradecimento sentido às forças policiais, já que estas os deixam continuar a fazer as suas barbaridades sem serem presos e julgados pelos seus crimes de ódio. Visto que este tipo de ações movidas pela homofobia e transfobia são partilhadas nos grupos de Telegram do grupo de extrema-direita, com as diretrizes de ação, seria expectável que as autoridades tomassem medidas para precaver estas invasões deploráveis em eventos. No entanto, isso não acontece. A nível de conteúdos digitais, deveria haver alguma espécie de monitorização, tendo em conta a desinformação, perigosa e incitadora de ódio que propagam pela internet.

Quanto à suposta saudação nazi no fim da intervenção, caros Habeas Corpus, tal ação é simplesmente deplorável. Estudem um pouco de História e percebam a barbaridade que tal comporta, porque já não há paciência.

Façam o que fizerem, a comunidade LGBT+ nunca vai deixar de existir. Não seria mais útil usarem o vosso tempo para outra coisa qualquer mais profícua?